20/11/2020 16:42
Peixes estão voltando ao Araguaia
Rio já foi o mais piscoso do mundo
Quando eu era menino, meu pai me transformou em pescador. Quem imagina que os ribeirões de Goiânia e o Rio Meia-Ponte sempre foram poluídos, se engana muitíssimo. Em 1964, no mês de julho, com 3 anos de idade, aqui cheguei, e uma das diversões era seguir meu pai em seu mundo repleto de minhocas, varas e anzóis.
Onde hoje corre esgoto, a céu aberto, retirávamos lambaris, bagres, piapara, barbados, dourados e pintados. Lembro-me de uma fazendinha, hoje na altura do Bairro Goiânia 2, então mata cerrada, de propriedade do “véi Abílio”, que enchia nossos embornais. Íamos e voltávamos num Jeep 1959. Festa pura.
Uns dois anos depois, as águas começaram a ficar poluídas. Meu pai decretou: “Alguma coisa está fora de ordem”. Começamos a buscar alternativas, e a escolha óbvia foi o Rio Araguaia. O local mais próximo era Aruanã, que àquela época parecia mais aldeia indígena do que propriamente uma cidade –nem sei se já era município–, e com a vantagem de que lá deságua o Rio Vermelho.
Era uma epopeia a viagem. Asfalto existia somente até determinada altura. As estradas eram precaríssimas, com muita lama no período chuvoso. A partir de certo trecho já não havia energia elétrica; água tratada, muito menos. Qual era a solução? Um caminhão levava mantimentos e utilidades: água; 2 freezers, que chamávamos de industrial, cheios de barras de gelo; geradores e barracas de lona, que montaríamos quando fosse escolhido o local de acampamento. Os atoleiros se sucediam, fazendo brilhar o velho jipão do senhor Avelomar Torres, que puxava, inclusive, o caminhão.
Vale lembrar que até 1975 o Araguaia era considerado o rio mais piscoso do mundo, com uma incrível variedade de espécies. Algumas eu nunca mais vi, como a gigantesca piranha preta, de olhos vermelhos, do tamanho de uma caranha (no Pantanal, chamada de pacu). Enormes pintados, dourados, pirararas, filhotes (piraíbas), mandubés e a pequena, mas saborosa, matrinxã. Na volta, os peixes que vinham acondicionados nos freezers abasteciam a parentes e amigos.
Em 1995, tornei-me procurador-geral de Justiça, e um dos meus primeiros atos foi criar a lendária Promotoria Ecológica Móvel do Rio Araguaia. As nascentes do grande manancial que percorre vários Estados vinha sofrendo com as chamadas voçorocas, erosões causadas pelas águas da chuva, em locais que antes foram severamente desmatados; no caso, para o plantio de soja.
Os outros problemas eram a mata ciliar arrancada para criação de bovinos, assoreamento, pesca e caça predatórias, esgoto despejado in natura em suas águas, sem contar o franco desrespeito dos turistas quando chegada a temporada de férias, ao deixarem nas praias o lixo de sua estadia.
Quatro intrépidos promotores foram designados para atuação: Vânia Marçal, Alencar Vital, Wilson Nunes e João Teles. Lá, receberam o que havia de ponta na época. Barcos, bons motores, sede própria, equipe especializada na defesa ecológica (lembro-me do excepcional “Pirarara”, pirangueiro arrependido que conhecia todas as manhas de predadores e que muito contribuiu na apreensão de boias, espinhéis, redes, tarrafas e toda sorte de armadilhas ilegais feitas para apanhar o pescado), além de parceria com órgãos ambientais.
Certa feita, fui acompanhar as diligências dos jovens promotores e me deparei com uma cena muito vívida, ainda, em minha memória. Um grupo de tartarugas, que nós protegíamos com o “Projeto Quelônios”, estava pondo os seus ovos, lado a lado, numa praia no período noturno, quando, surpreendidas por uma onça, tiveram suas cabeças e patas arrancadas e comidas por elas.
Aprendi, naquele instante, que as tartarugas que começam a botar só saem de lá quando terminam de pôr o seu último ovo. Descobri, também, que onças comem tartarugas. Quando as encontramos, seus restos estavam sendo devorados por aves carniceiras. Aproveitamos para terminar o serviço e jogar areia em cima dos ovos já postos.
Em 1999, tornei-me secretário de Segurança Pública e Justiça, quando criei a Delegacia Móvel de Defesa do Rio Araguaia, sediada em Aruanã, seu principal ponto turístico. O delegado Luziano Carvalho pode também desempenhar um brilhante trabalho.
Pescador, de vez em quando, saí vagando pelo Brasil. Vez por outra, voltava ao Araguaia, mas nunca com a frequência de antes, até porque já não encontrava mais peixes para pescar e soltar. Este ano foi diferente. Com a pandemia, por muitas vezes pus os pés em suas areias. Necessário se faz lembrar que os governos passados proibiram o transporte de peixes em rodovias goianas, o que é mantido até hoje.
Em Aruanã, voltei aos meus tempos de criança, já que em menos de duas horas pesquei mais de 20 corvinas, algo impensável há pouco tempo. Pudemos comer um ceviche, preparado na hora pelo barqueiro, e soltar a grande maioria.
Prazer maior tive numa pescaria lá feita, na semana passada, com minha filha, Aline, fiel pescadora e amiga, quando na foz do Rio Cristalino ela fisgou uma pirarara de mais de metro; demoramos cerca de 15 minutos para embarcá-la e depois soltá-la na praia mais próxima. Também pescamos dezenas de aruanãs, barbados e mandubés.
Surpreendeu-me o empregado da pousada em que nos hospedamos, sempre alertando para que soltássemos os peixes que não fôssemos comer no dia. Centenas de tartarugas estavam boiando, o que é um sinal de vida no rio. Botos, aos montes, vinham à tona mostrar suas habilidades.
Algo, no entanto, chamou-me a atenção de maneira redobrada. A seca no leito do Araguaia acontece todos os anos, mas neste ponto do rio as águas são profundas e o poço de frente à pousada é um lugar tradicional de pesca de pirararas e piraíbas. Atravessamos o rio a pé, de um lado para o outro, com as águas, no máximo, acima do joelho, arrastando a canoa, sob um sol escaldante de mais de 43 ºC, com sensação térmica em torno de 50 graus. Não posso deixar de reconhecer que alguma coisa está fora de ordem.
Por Demóstenes Torres, 59 anos, é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado.