23/11/2020 12:23
Soberba nos aproxima da ignorância
Bom-senso é vitimado na pandemia
Conheço uma história em primeira mão que já quero tornar pública há tempos, mas sempre penso duas vezes antes de fazê-lo porque ela implica numa exposição meio desagradável. Mas o momento chegou. Vou omitir nomes para poupar os envolvidos, mas todos eles estão vivos para corroborar o caso.
Era uma vez a Fulana, adolescente que tinha uma verruga na mão. Aquilo não ia embora nunca, e ela morria de vergonha daquela protusão áspera e repulsiva. Fulana tinha tentado de tudo, inclusive a técnica inventada por ela mesma de acender um fósforo, apagar, e pressionar a brasa vermelha naquela excrescência. O resultado, contudo, era sempre o mesmo: uma ferida que criava uma casca, finalmente caía, e depois dava lugar a uma nova verruga. Então a melhor amiga de Fulana, a também adolescente Sicrana, veio lhe dizer que sua mãe, Sicrana Sênior, conhecia uma simpatia para eliminar o problema. Fulana se gabava de ser extremamente racional e científica, e declinou a oferta várias vezes, recusando-se a imaginar que tipo de coisa ela teria que costurar dentro da boca de um sapo. Até que um dia, desesperada, ela aceitou a ajuda e se dispôs a ouvir a mandinga. Sicrana então falou que a simpatia era um segredo, e só podia ser contado pela sua própria mãe diretamente para a mãe de Fulana, Fulana Sênior. As duas mães então conversaram ao telefone privadamente, combinaram a uruca, e uns dias ou semanas depois Fulana acordou e a verruga tinha sumido para nunca mais voltar. Nunca mais, depois de anos de incômodo.
Fulana e Sicrana estavam pasmas, não acreditavam. A mãe de Fulana se recusou a explicar a simpatia, repetindo que era melhor não saber detalhes. Mas diante da insistência da filha, a mãe se rendeu e revelou a mágica: a superstição consistia em colocar sangue menstrual na verruga da filha enquanto ela dormia, o que Fulana Sênior fez com aquele amor inexplicável que só quem é mãe entende. Em outras palavras, a mãe da mãe de Sicrana, com pouco ou quase nenhum estudo, havia passado para a filha um conhecimento sobre as células-tronco que muitos médicos ainda não possuíam. Este artigo da New Scientist fala de como o endométrio mensalmente produz células-tronco adultas, verdadeiros milagres genéticos, e que “a retirada dessas células seria tão invasiva quanto colher células-tronco da medula”. Mas graças a “pesquisas recentes”, 2 grupos científicos conseguiram encontrar essas células no sangue menstrual. O artigo é de 2007.
Eu conto essa história porque ela é uma ilustração perfeita de um dos paradoxos dos nossos tempos: quem mais conhece, menos sabe. Essa é uma generalização, claro, mas infelizmente eu mesma me encontro nela. São geralmente aqueles de mente mais supostamente “científica” os que têm mais dificuldade de contemplar as possibilidades da ciência, porque são eles que tendem a limitar essas possibilidades apenas àquilo que cientificamente entendem. Em outras palavras: o universo de possibilidades fica tão limitado quanto o universo que já se conhece, e esse tudo que se sabe passa a ser visto como tudo que existe.
Vou dar um exemplo dessa que é a pior ignorância de todas –aquela que não sabe que ignora, e que portanto não concebe as infinitas possibilidades do que ainda não foi explicado. Um dia desses meu pai me mandou um vídeo em que um homem fricciona uma mesa de metal com algo que produz um som, e o pó espalhado na mesa (sal, areia, não sei) vai se arranjando em formas geométricas que mudam de acordo com cada som. Eu estava pronta pra descartar aquilo como um truque, ou como coisa de quem acredita em cristais energéticos –certamente não era possível que ondas sonoras conseguissem rearranjar partículas em formas geométricas tão coesas. Mas depois que eu dei uma pesquisada no assunto e vi que aquela aparente mágica era pura ciência, eu tive que morder a língua, porque a partir daquele fenômeno até os tais cristais energéticos deixaram de ser uma impossibilidade.
Quem leu meu worstseller Eudemonia sabe que uso “cristais energéticos” para zombar de crenças new-age que carecem de embasamento científico. Quem tá rindo agora? Quem garante que daqui a alguns anos não vamos descobrir vibrações minerais que reverberam em quem as toca, e vamos finalmente poder enxergar o que ainda não temos equipamento para medir?
Essa zombaria dos igno-arrogantes se torna ainda mais nociva quando ela não se limita apenas ao que (ainda) não foi comprovado, mas se volta até contra o bom-senso mais básico, aquela verdade cuja auto-evidência deveria dispensar o selo verificador da ciência comercial.
No dia 3 de março deste ano, o UOL publicou um artigo com uma manchete constrangedora: “Sem dados, Bolsonaro diz que isolamento pode levar a suicídios e depressão”. É de se perguntar em que buraco o autor de uma frase dessa vem se escondendo para ignorar algo que uma criança de 10 anos entenderia com naturalidade. Bolsonaro estava certo em sua preocupação, claro, e quem diz isso não sou eu, mas o Jama, o Jornal da Associação Médica Americana, fundado em 1883.
Veja só a ironia: ao ridicularizar algo perfeitamente racional dito por Bolsonaro, o jornalista de má-fé transforma aquele bom-senso básico e até banal em revelação divina. O que era simplesmente uma constatação lógica se transforma em profecia nesse contexto de cegueira intencional, e Bolsonaro, caolho, vira um oráculo com visão superior.
O bom-senso, de fato, vem sendo uma das maiores vítimas da covid-19 e da politização da pandemia, e estamos tendo a oportunidade de presenciar ao vivo um dos fenômenos mais desconcertantes e intelectualmente vergonhosos da nossa era: o diagrama de Venn em que exatamente quem mais duvida do que foi testado e aprovado pelo Tempo é quem mais facilmente acredita nos testes apressados da ciência corporativa de finalidade comercial.
Essa pandemia está servindo para testemunharmos, ao vivo, a maneira como a mídia comercial e a ciência corporativa estão desprezando o conhecimento popular e abrindo mão daquela sabedoria inestimável depurada por experimentos de tentativa-e-erro, filtrados ao longo do tempo e purificados por diferentes gerações. Na semana que vem vou tentar abordar ao menos duas coisas essenciais para a saúde, verdadeiros remédios para incontáveis tipos de doença, devidamente ignorados ou deliberadamente desprezados pela imprensa e pela ciência que ama patentes e royalties: o sol e o sal. Também vou falar de outras crenças populares que só agora a ciência conseguiu comprovar.
Mas antes de eu terminar, recomendo que o leitor faça um teste: vá na mídia social do seu jornalista favorito e veja o que ele ou ela falou sobre pessoas indo à praia durante a pandemia. Em vários casos é possível perceber que quem fica em casa cumprindo ordens que nunca se deu ao trabalho de questionar tem uma certa raiva incontida daqueles que escolheram “viver perigosamente” e ir tomar uma cerveja na calçada ou pegar um sol na praia.
Note também o tanto de pessoas que “fizeram tudo direitinho”, “seguiram todas as orientações de distanciamento”, alguns se enfurnando em casa e evitando ameaças aos seus anticorpos, e mesmo assim pegaram a covid –um fato interessante quando contrastado com a situação dos mendigos aqui do bairro, alguns com tuberculose, sem máscara, sem teto, sem álcool em gel e ainda assim vivinhos da silva.
Claro que não estou recomendando nada, e minha observação é puramente empírica e sem método, mas poderíamos ter transformado essa observação no maior experimento e oportunidade científica já oferecidos a uma civilização: bilhões de pessoas que poderiam ter monitorado e anotado seus hábitos, alimentação e consumo de medicamentos, depois ter esses dados cruzados e confrontados com aqueles que pegaram e não pegaram a covid-19, e aqueles que sobreviveram e morreram dela. Essa teria sido a maior amostragem de dados já coletados, com a certeza triste porém garantida de que teríamos número suficiente de mortes para chegar a uma conclusão robusta. Que outro teste científico poderia contar com tamanha “sorte” e conjunção de fatores?
Em abril deste ano, no começo da pandemia, eu sugeri um aplicativo que iria coletar essa informação, e cheguei a ter algumas conversas com especialistas em blockchain, anonimidade e coleta de dados, mas não parecia haver interesse comercial que superasse o lucro advindo de uma vacina, feita por meia dúzia de empresas, com venda garantida para bilhões de pessoas de uma vez só.
É por causa desse mesmo princípio, o lucro, que dificilmente você vai ver na mídia brasileira reportagens sobre as recentes comprovações de que o iodo –um dos elementos mais presentes na água do mar– consegue matar o coronavírus em questão de segundos, tanto topicamente quanto quando ingerido. É também por isso que você provavelmente vai encontrar vários artigos falando que a covid-19 é “racista”, já que pessoas pretas estariam morrendo mais do que as brancas, mas dificilmente você vai ler reportagens mostrando que pessoas de pele escura precisam de muito mais tempo de exposição ao sol para produzir a mesma quantidade de vitamina D na pele –outro remédio contra a covid-19 de eficiência confirmada, mas carente daquele incentivo imbatível para a sua divulgação: uma patente exclusiva.
Por Paula Schmitt é jornalista, escritora e tem mestrado em ciências políticas e estudos do Oriente Médio pela Universidade Americana de Beirute. É autora do livro de ficção “Eudemonia” e do de não-ficção “Spies”. Venceu o Prêmio Bandeirantes de Radiojornalismo, foi correspondente no Oriente Médio para o SBT e Radio France e foi colunista de política dos jornais Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo. Publicou reportagens e artigos na Rolling Stone, Vogue Homem e 971mag, entre outros veículos.