23/02/2021 13:14
Fome ameaça população mais pobre
É justo impostos em troca de auxílio
A fome nunca foi boa conselheira e dona Carmelita Marques da Silva aprendeu isso na marra. Lavadeira, mãe de família e moradora na Vila Vintém, em Bangu, subúrbio do Rio, chorava num canto da delegacia naquela madrugada de 5 de setembro de 1983. Acabara de ser presa durante um saque a uma mercearia. Dentro da sacola de Carmelita a polícia encontrou biscoitos, pacotes de gelatina e de pudim em pó. Ela estava entre as 200 pessoas que horas antes invadiram e saquearam a mercearia de Américo Augusto.
O Rio vivia uma onda de saques a supermercados, quitandas e mercearias. Pequenas multidões de 100, 200, 300 pessoas, cercavam as lojas, invadiam e levavam todo tipo de comida. O governador Leonel Brizola acreditava haver um movimento desestabilizador por detrás dos saques. O presidente general João Figueiredo também. Mas o fator de desestabilização não era a oposição ou os sabotadores de plantão, mas a economia que naquele setembro registrou uma inflação anual de 146,35%.
Dois dias depois da prisão de dona Carmelita, o soldador Sidney Gomes dos Santos, o Magal, 51 anos, pai de 5 filhos, foi preso acusado de incitar saques em Bangu. Mas ele estava mesmo era atrás de comida. Nada mais. Tinha família para alimentar num país onde os pobres eram os mais massacrados por aquela inflação descontrolada ou galopante, no jargão dos economistas naqueles tempos difíceis. “Nunca vi tanta gente pobre, mas trabalhadora, disposta a furtar”, desabafou um PM cara a cara com a realidade. Ele também era negro e pobre.
Vi e vivi tudo isso de perto como repórter do Globo (quem quiser checar basta consultar o arquivo do jornal). Eram cenas terríveis A fome não é um fenômeno natural, mas um produto artificial de conjunturas econômicas defeituosas, ensinou o pernambucano Josué de Castro (1908-1973), autor de Geografia da Fome e 3 vezes indicado para o Prêmio Nobel.
A elite brasileira aprendeu pouco com Josué. Mas sabe que um solavanco social provocado pela fome pode ser devastador. Essa possibilidade estava no radar do governo no fim de março do ano passado, quando a pandemia parou o país como se o tirasse da tomada. Em alguns pontos da periferia de São Paulo e do Rio houve tentativas de saques. E o caldo não engrossou porque o governo conseguiu rapidamente pagar R$ 600 mensais a 67 milhões de brasileiros. O auxílio acabou, mas a pressão para continuar a pagar é enorme. E justa.
Os políticos foram obrigados a ficar nas suas bases durante a pandemia. Naqueles dias de aeroportos fechados e medo da morte, conviveram de perto com as agruras de uma população que ficou sem trabalho da noite para o dia. Sobreviver tinha virado uma loteria.
Quase metade dos eleitores brasileiros (47%) não tem trabalho ou renda fixa. Essa informação está nas pesquisas do PoderData publicadas quinzenalmente. Num país com 150 milhões de eleitores, são nada menos que 70.500.000 pessoas. Quase os mesmos 42,3% que, de acordo com dados do TSE, pertencem ao grupo dos eleitores analfabetos, analfabetos funcionais ou com ensino fundamental completo ou não. É possível manter toda esta gente sem dinheiro para comprar comida nestes tempos em que o mundo virou de pernas para o ar? Estas pessoas não são diferentes daqueles pais e mães de família presos há quase 40 anos pelo crime de roubar para comer. Continuam sendo os mesmos pobres, semianalfabetos e famintos.
O ministro Paulo Guedes diz que não quer aumentar impostos. Como contribuinte, não vejo problema em pagar mais algum na certeza de que o dinheiro chegará na mão de quem precisa dele para comer. O sistema foi competente para garantir dinheiro na veia para os mais pobres e a economia estaria muito pior. De nada adianta responsabilidade e sensibilidade social sem atitude. Os donos das grandes fortunas, os grupos econômicos, industriais, comerciais e agrícolas poderiam ser os primeiros a anunciar ao ministro da Economia que desejam pagar para que a maioria consiga se alimentar comendo pelo menos o básico, ainda que alguns desejem algo mais como os biscoitos, a gelatina e o pudim de dona Carmelita. Fazer cara de paisagem ou ficar esperando a retomada da economia só vai esquentar ainda mais a chapa.
A prudência não recomenda parar de pagar auxílio em dinheiro num momento de incerteza e insegurança, especialmente para a população mais vulnerável. Os políticos acabariam na mesma situação do jovem Josué de Castro, que foi trabalhar como médico em uma fábrica grande. Intrigava-o o fato de boa parte dos trabalhadores ficar doente sem ter uma doença específica. Os patrões diziam que era preguiça. Josué resolveu pesquisar e descobriu que a doença era fome. Mostrou os resultados da sua investigação aos donos da fábrica, mas eles riram dos argumentos daquele jovem médico, para quem trabalhador sem fome produziria mais e melhor. E em vez de mandarem a fome embora, acabaram demitindo Josué.
Por Marcelo Tognozzi é jornalista e consultor independente há 20 anos. Fez MBA em gerenciamento de campanha políticas na Graduate School Of Political Management – The George Washington University e pós-graduação em Inteligência Econômica na Universidad de Comillas, em Madrid.