10/03/2021 13:27
Questionar leva a julgamentos
Quando debate seria bem-vindo
A invasão do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003, foi uma tragédia política e humanitária de proporção descomunal, mas ela deixou uma lição valiosa: a de que é possível enganar o mundo inteiro com uma história bem contada. Fatos, detalhes, inconsistências, contradições lógicas –nada disso superou a narrativa do mocinho e o bandido.
A fábula do bem contra o mal não serve apenas para fazer criança dormir –ela é praticamente a única história que a maioria dos adultos consegue entender. Se um filme não deixar claro logo no começo quem é o herói e quem é o vilão, metade da audiência muda de canal. E foi assim, com uma narrativa de fácil entendimento, que os Estados Unidos e o Reino Unido pregaram uma das maiores mentiras já vistas na história: a de que o Iraque tinha participação nos ataques de 11 de setembro, e que possuía um arsenal de armas de destruição em massa.
Mas a partir daí um fenômeno ainda mais assustador aconteceu: o controle da informação em nações democráticas. E esse controle não foi feito por leis, nem imposição de um governo tirânico. Ele aconteceu da forma mais orgânica possível. Como naqueles documentários sobre o fundo do mar onde milhões de peixes nadam em perfeita harmonia, políticos, jornalistas, especialistas e a população em geral dançaram em absoluta sincronia, todos seguindo uma coreografia que já sabiam sem que fosse necessário ensinar. Como eles sabiam para onde ir? Como acertavam o passo sem sair da linha, bilhões de pessoas em perfeita coesão de pensamento e convicção? Como foi possível que a maioria do mundo visível tenha ficado tanto tempo sem saber o que uma minoria bem-informada já conhecia? Isso aconteceu por causa de um dos reguladores mais potentes da natureza: o medo. Só que aqui existe um detalhe crucial, um elemento imprescindível para o sucesso dessa coreografia: a ameaça que controlou manadas de indivíduos sencientes não vinha do terrorista islâmico, o raio improvável que uma simples calculadora ajuda a dissipar. Não. O medo vinha daquela ameaça que atinge a todos nós, e nos vigia o tempo todo, por todos os lados, todos os dias: o julgamento do vizinho.
Esse julgamento era implacável, irreversível, e ainda assim muito fácil de fazer. Qualquer crítica às soluções propostas pelos Estados Unidos, e qualquer questionamento das falsas premissas que fomentaram uma invasão que matou, aleijou e empobreceu milhões de inocentes, tudo isso era derrubado com um mero sopro, uma única palavra mágica investida de um poder monstruoso: traidor. É assim que esses peixes-humanos se movem: olhando para o lado, e vendo como os outros agem. Ninguém sai da linha nessa quadrilha junina. Para que isso aconteça em uníssono, é necessário controlar alguns peixes maiores, influenciadores às vezes pagos com dinheiro, mas regularmente premiados com o selo de pertencimento a uma elite que nomeou a si mesma e se retroalimenta do poder que ela própria regurgita. Esses passam a ser parceiros do mocinho, e quem não se ajusta é automaticamente cúmplice do vilão.
Acho que já ultrapassei meu limite de metáforas, e vou portanto aos fatos. Estamos revivendo a mesma história, insuspeitamente repetida apesar da repetição do clichê mais chato do mundo, e vivemos agora uma outra tragédia aristofânica onde o teorema de George Bush Mini ecoa com significado ainda mais nefasto: “Ou você está com a gente, ou você está com o coronavírus”. É exatamente isso que está acontecendo: Saddam Hussein e o terrorismo islâmico foram devidamente substituídos por vilões ainda mais formidáveis, mais avassaladores e que, ao contrário do raio, pode atingir todo mundo, a qualquer momento.
É claro que não duvido da pandemia, e reconheço os efeitos devastadores dessa praga. Mas o mero fato de que eu me sinto obrigada a fazer tal caveat é a prova de que quem sai da linha é banido do cardume.
Vejam só vocês: esta semana eu falava do documentário da Netflix, Operação Enganosa. Ele mostra como próteses de última tecnologia para joelhos, ombros e quadris, fabricados por uma subsidiária da Johnson & Johnson, foi causando sintomas de alzheimer e parkinson em milhares de pessoas nos EUA. Isso aconteceu porque o cobalto usado para a fabricação da prótese nunca tinha sido usado antes, e o tempo em que foi testado não foi suficiente para que aqueles sintomas se revelassem. Ainda assim, ele foi aprovado pela FDA (a agência reguladora de medicamentos e equipamentos médicos nos EUA). O documentário conta como o cobalto ia derretendo no corpo humano e causando danos neurológicos que só foram descobertos por acaso. Foi um médico ortopedista, ele próprio admirador daquela tecnologia nova, que teve uma prótese implantada em si mesmo e começou a apresentar sintomas de demência, tremores, e a incapacidade de regular seus movimentos.
Pois bem, fui buscar o script do documentário para citar uma passagem que achei de uma sabedoria bastante sucinta, que infelizmente soa bem melhor em inglês. Ela é dita por um médico que aconselha seus pacientes a sempre preferirem terapias antigas em lugar de terapias novas, porque as antigas já foram testadas por tempo suficiente. Criticando a rapidez da tecnologia que não teve tempo de se adaptar ao corpo, o médico diz: “O novo equivale ao não-comprovado”. (Aqui o contexto da passagem, no original.) Mas na busca por aquela passagem, acabei encontrando uma imagem do documentário que tinha me passado despercebida a primeira vez que o assisti, e que me deixou boquiaberta pela ausência de ironia e pelo escorregão autorrevelador.
Nessa cena, o documentário mostra o slogan da empresa que fabricou as próteses: “Testado por nós. Testado na vida real por você”*. Essa empresa continua funcionando, e nem precisou mudar de nome. Mas assim que eu postei aquele slogan, sem em nenhum momento mencionar a pandemia, a vacina ou o coronavírus, um seguidor meu, bastante inteligente e atento, retuitou minha postagem com o seguinte comentário: “A vacina tá passando em testes realizados com todas as outras. Qual a necessidade de fazer este tipo de comentário? A militância do contra às vezes cega as pessoas…”
É sobre isso que eu estava falando: o julgamento do vizinho. Meu seguidor não está totalmente errado, ou desvairado: eu tenho sim preocupações com a vacina, especificamente a da Pfizer, e venho batendo nessa tecla regularmente. Pretendo de uma vez por todas falar sobre a tecnologia do mRNA na semana que vem. Certamente é uma tecnologia formidável. Ela nunca antes foi testada em humanos, e é de uma complexidade fascinante, um exemplo da engenhosidade humana que me faz suspirar como o faço quando paro para pensar e vejo um avião superando a gravidade. Eu sou daquelas que aprecia o funcionamento de máquinas como quem admira o pôr-do-sol, e já passei viagens inteiras preferindo ver projetos de engenharia e ciência do que indo a pontos turísticos. Uso esse exemplo apenas para dizer que por um tweet em que eu questiono a honestidade de uma empresa farmacêutica eu praticamente fui jogada na sarjeta do negacionismo, cúmplice da covid.
Adivinha quem adora esse tipo de patrulhamento intimidador? Acertou quem falou “indústria farmacêutica.” Este artigo de 2008 da revista Science (publicada pela AAAS: Associação Americana para o Avanço da Ciência), mostra como empresas farmacêuticas pagavam dinheiro e favores a conselheiros oficiais da FDA, a agência reguladora de remédios dos EUA. Aqui, um artigo publicado pela CBS News fala como a empresa Merck na Austrália criou uma lista de médicos que criticavam seu medicamento Vioxx. Nessa hit-list, o nome de cada médico hostil ao remédio vinha com palavras ao lado: “neutralizar”, “neutralizado”, “desacreditar”.
Em um e-mail entre executivos da empresa, em 1999, revelado em processo judicial, um executivo da Merck escreve sobre os médicos: “Temos que ir atrás deles e destruí-los onde eles vivem”. Há que se perguntar: não seria exatamente agora o momento de estarmos mais atentos? Não seria durante essa pandemia, quando estamos aleijados e cegos pelo medo, a hora de permitir e de fato estimular o questionamento saudável e exigir garantias de que não vamos estar testando em nós mesmos o que ainda não foi totalmente testado? Na semana que vem, em nome do debate maduro e da variedade saudável de informação, vou expor fatos que são tão escondidos e obscuros que parecem mentira, mas que foram divulgados até pelas empresas farmacêuticas. Boa semana a todos, com muita saúde e informação suficiente para que suas decisões sejam sempre bem fundamentadas e inteligentes.
*Eu tenho minhas objeções a essa interpretação, tanto em inglês como na legenda em português, e acho que a ausência do hífen que transformaria “real life” em adjetivo/qualificativo (real life-tested) faz daquela frase outra coisa: “Testado por nós. Vida real [plena] testada por vocês”. Mas aceito a interpretação feita pelo documentário porque sou uma das poucas pessoas que ainda usa o hífen para designar qualificativo a fim de que não se confunda com substantivo. Nem o New York Times usa mais. Discussão infinita, ignorem. Tudo indica que minha chatice gramatical está completamente ultrapassada, e a interpretação de pessoas de língua nativa inglesa é muito mais confiável que a minha, no mínimo porque é agora muito mais usada, e o hífen com essa função já vem sendo eliminado há tempo.
Por Paula Schmitt é jornalista, escritora e tem mestrado em ciências políticas e estudos do Oriente Médio pela Universidade Americana de Beirute. É autora do livro de ficção “Eudemonia” e do de não-ficção “Spies”. Venceu o Prêmio Bandeirantes de Radiojornalismo, foi correspondente no Oriente Médio para o SBT e Radio France e foi colunista de política dos jornais Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo. Publicou reportagens e artigos na Rolling Stone, Vogue Homem e 971mag, entre outros veículos.