”A APM Manso só como uma usina hidrelétrica, o que seria um erro grave, ainda que sua geração elétrica seja importante garantidor da estabilidade energética ao estado”, escreve José Antônio Lemos dos Santos
26/01/2022 06:35
”Manso foi protetora da cidade contra outras possíveis tragédias”
Não fosse Manso, no dia 15 de janeiro de 2002, exatos 20 anos atrás, teriam passado sob a Ponte Júlio Muller 3.250 m3/s de água, volume superior aos 3.075m3/s da cheia de 1974, de triste memória para os cuiabanos.
Inaugurada no ano anterior, Manso foi então logo testada como protetora da cidade contra outras possíveis tragédias, razão inicial da construção da barragem. Embora sucesso total, poucos ficaram cientes. Teria repetido em 2010.
Com algum controle posterior da ocupação do solo urbano poderia ter sido uma alternativa de solução definitiva para esse tipo de problema em Cuiabá, e outras cidades.
Importante relembrar este acontecimento, em especial aos mais jovens, para destacar que a origem da barragem foi como equipamento de proteção urbana contra inundações após a cheia de 1974, que inundou totalmente a região mais populosa de Cuiabá, formada pelos antigos bairros Terceiro (“de Dentro” e “de Fora”), Ana Poupino e Barcelos.
No dia 17 de março daquele ano o rio atingiu na régua linimétrica o nível de 10,87 m servindo de referência para posterior construção da Avenida Manuel José de Arruda, a popular “Beira-Rio”, com seu nivelamento básico na cota 150 metros acima do nível do mar.
Diziam os antigos que a estação das chuvas em Cuiabá tinha dois picos, um em dezembro/janeiro e outro em março, também chamado de “repique”, por volta do dia de São José encerrando o período chuvoso. As cheias eram aguardadas nessas épocas, ainda que nem sempre as duas com a mesma intensidade.
A cheia de São José em 74 foi uma tragédia para a cidade quando esta dava um salto de crescimento em função da inauguração de Brasília. Grosso modo Cuiabá saltaria de 56 mil habitantes em 1960 para 240 mil em 80, e a cidade não estava preparada, após décadas de estagnação. Alguns visionários, verdadeiros profetas já desenvolviam, por exemplo, a ideia do CPA.
O governo Geisel tomara posse dois dias antes, dia 15, já com a inundação avançada. Logo o ministro do Interior Rangel Reis veio a Cuiabá e tomou duas decisões radicais para a cidade: determinou a demolição do que sobrara dos bairros atingidos, transferindo suas populações para conjuntos residenciais a serem construídos.
Perderam-se aí alguns marcos da cultura cuiabana que viraram saudade nas lembranças dos blocos carnavalescos “Sempre Vivinha”, “Coração da Mocidade” e “Estrela Dalva”, por exemplo. Outra determinação do ministro foi a realização de estudos técnicos para evitar tragédias semelhantes em Cuiabá resultando em Manso, em princípio só para reduzir picos de novas enchentes, um “açudão” de proteção urbana. Fosse só este seu objetivo, Manso já teria valido a pena.
Depois, em 1978 no antigo Minter, a Comissão da Divisão do Estado, da qual eu fazia parte, transformou Manso em um projeto de aproveitamento múltiplo (APM), pioneiro no Brasil para solucionar também a questão energética, na época o principal problema estadual.
Com a energização do “açudão”, foram acrescidos os objetivos de regularização de vazão do rio (além de reduzir suas cotas máximas, garantir uma cota mínima de água), a irrigação rural e o abastecimento de água por gravidade para as cidades da Baixada Cuiabana, três barragens a fio d’água rio abaixo, sendo que seu lago poderia também receber projetos de piscicultura, turismo e lazer, ampliados agora com aquicultura e as possibilidades de um parque gerador de energia solar.
Hoje é comum pensar a APM Manso só como uma usina hidrelétrica, o que seria um erro grave, ainda que sua geração elétrica seja importante garantidor da estabilidade energética ao estado.
Mas, não se pode desprezar os demais potenciais do grande empreendimento que, tem nome e sobrenome: APM Manso. E assim deve sempre ser lembrado para um dia ser aproveitado em todas suas dimensões: APM Manso.
Por José Antonio Lemos Dos Santos é arquiteto e urbanista, membro da Academia de Arquitetura e Urbanismo (AAU-MT).