”A hora de todos um dia chega. E como foi possível atestar a segurança sem o tempo de observação que todas as outras substâncias imunizantes na história demandaram? Muita grana. Hein?”, escreve Guilherme Fiuza
27/01/2022 07:23
”Isso mesmo que você ouviu: dessa vez tinha muito dinheiro envolvido, e os caras são bons demais, entende?”
Tem um perigo lá fora e todos devem ficar em casa. Quem sair coloca não só sua própria vida em risco, mas também – e principalmente – a dos outros, porque o perigo é contagioso. O perigo está no mundo todo, então a solução é simples, porque é a mesma para todas as pessoas em todos os lugares: não circule. Uma pessoa andando sozinha ao ar livre é um ser incompreensivo, insensível e abjeto.
O herege moderno. Deve ser imediatamente detida e recolhida exemplarmente, com a energia necessária, e o mundo aprenderá a ver uma mulher sozinha algemada e arrastada por vários homens armados como uma imagem redentora, um emblema da salvação, um manifesto humanista. A coletividade quando resolve ser ética e levar sua empatia até as últimas consequências ninguém segura. É o maior espetáculo da Terra. E aqueles ali, circulando amontoados? Olha! Tem mais ali! Lá também! Pra cima deles! Pega! Prende! Esfola! Não? Por que, não? Eles não estão colocando vidas em risco? Ah, eles estão indo trabalhar para servir aos empáticos que estão fazendo o distanciamento social perfeito em suas residências espaçosas, coberturas e sítios? Ufa. Então pode, né?
Claro. Para podermos parar o mundo com segurança é preciso abastecer os que estão parados, senão eles morrem de fome e não poderão nem tirar foto do seu isolamento ético. Fica resolvido assim: fotografamos as mais lindas quarentenas (a da Lady Gaga ficou sensacional) e não fotografamos a muvuca nos ônibus, para não confundir o público e não prejudicar a mensagem da nova ciência sanitária. É muito importante que ninguém se confunda. Com o pessoal das belas quarentenas bem abastecido pelo pessoal dos ônibus e dos trens fica tudo bem e ninguém morre de fome. E os que não trabalham em casa de rico e precisam buscar informalmente a sua sobrevivência a cada dia nas ruas? Aí a mensagem da nova ciência é clara: quem mandou ser informal? Agora aguenta. Mas isso não é desumano?
Segundo a nova ciência, desumano é caminhar na praia. Fica assim: o governo (você) se endivida para dar dinheiro de graça para uma parte desses informais e o resto fica aglomerado nas periferias esperando que a sorte lhes caia do céu, porque na nova agenda de higienização social não tem lugar para gente desorganizada. Por falar em higiene, além do distanciamento profilático você vai inocular uma substância que te protege do perigo. Protege você e os outros. Ou, mais exatamente, protege os outros de você. Quem não se inocular está colocando vidas em risco. Lembra dessa parte? Então não se esqueça nunca mais dela.
Este será para sempre o chamado irrecusável de todas as medidas que a nova ética te mandará tomar e você obedecerá, porque é um cidadão consciente, empático e moderno. Mas considerando-se que o perigo não se revelou fatal para a imensa maioria das pessoas, não seria suficiente os que forem vulneráveis ou que assim desejarem se protegerem com a substância inoculável e tocarem todos a vida em frente? Não. Os não-inoculados são um perigo para os inoculados. Mas a substância não protege os inoculados contra o perigo? Claro que protege, mas na dúvida melhor não arriscar. Dúvida? Que dúvida?
Apareceram inoculados infectados. Ok, mas se o inoculado pode se infectar, consequentemente pode transmitir, por que determinar a inoculação de todos? Cala a boca e dá o braço. Ok. Mas é seguro mesmo, né? É. E as pessoas jovens e saudáveis que tiveram reações graves e eventualmente letais exatamente após se inocularem?
Provavelmente foi coincidência, devia ser a hora delas. A hora de todos um dia chega. Ah, ok. E como foi possível atestar a segurança sem o tempo de observação que todas as outras substâncias imunizantes na história demandaram? Muita grana. Hein? Isso mesmo que você ouviu: dessa vez tinha muito dinheiro envolvido, e os caras são bons demais, entende? Os caras são feras. Eu vi numa palestra do Bill Gates que… Ok. Não precisa continuar. Já entendi. Viva a ciência e a ética.
Por Guilherme Fiuza, é jornalista e escritor com mais de 200 mil livros vendidos – entre eles: “Meu nome não é Johnny”, “3.000 dias no bunker” (ambos adaptados para o cinema), “O Império do Oprimido” e “Manual do Covarde”, Guilherme Fiuza trabalha para veículos como Jovem Pan, Gazeta do Povo e Revista Oeste. Seus canais no YouTube, Twitter e Instagram somam mais de 1 milhão de seguidores. Seu sonho é parar de falar de política – assim que a política permitir.