”Para que a segurança jurídica prevaleça e o Brasil seja de fato reconhecido como um Estado Democrático, e de Direito, as instituições devem ser independentes”, escreve Thaméa Danelon
23/02/2022 06:20
”O contrário somente trará atraso, instabilidade e caos”
Após a Polícia Federal (PF) ter concluído o inquérito que apurava o suposto crime de violação de sigilo funcional por parte do presidente da República, Jair Bolsonaro, a investigação foi encaminhada ao procurador-geral da República (PGR), Augusto Aras. Além do presidente, também estava sendo investigado um deputado federal. Como essas duas autoridades possuem foro privilegiado perante o Supremo Tribunal Federal (STF), coube ao PGR – que atua perante a Suprema Corte – analisar as conclusões deste inquérito policial.
A partir do momento em que Aras recebeu esse inquérito finalizado, ele poderia adotar um desse três caminhos:
- Solicitar a realização de novas diligências – caso fosse necessário para a elucidação do crime;
- Oferecer uma denúncia criminal, ou seja, processar criminalmente os investigados pela prática do crime de violação de sigilo funcional; ou
- Realizar o arquivamento do inquérito.
O PGR adotou o terceiro caminho, pois entendeu que não houve a prática de violação de sigilo funcional. Segundo o chefe do Ministério Público da União, o inquérito policial que investigava o ataque hacker ao TSE não era sigiloso, pois não havia uma decisão que decretava o segredo de justiça, e também a investigação não estava inserida nos sistemas da Polícia que tornavam essa apuração sigilosa. Assim, não havendo um sigilo do procedimento, o crime de violação de sigilo profissional não poderia ter sido cometido.
Desta forma, por ter constatado a inexistência de prática de crime, o PGR requereu o arquivamento do referido inquérito policial. De acordo com a lei processual penal, o Poder Judiciário – e no presente caso o STF – terá que homologar esse pedido de arquivamento, pois a palavra final sobre o arquivamento de uma investigação sempre será do Ministério Público. Assim, a nossa Suprema Corte não poderá desconsiderar esse arquivamento e nem determinar que a Polícia Federal continue com as investigações.
Explicando melhor, se um procurador ou promotor que atua na primeira instância realiza o arquivamento de uma investigação criminal, o juiz que apreciará esse ato até poderá não concordar com o arquivamento, mas ele não poderá obrigar o membro do Ministério Público a processar quem quer que seja. O que o juiz poderá fazer será encaminhar o inquérito ao chefe do Ministério Público (o PGR ou o procurador-geral de Justiça) e ele irá determinar que outro membro do MP processe criminalmente o investigado ou irá manter o arquivamento, caso o chefe entenda que não há crime ou elementos que justifiquem a abertura de uma ação penal. Por conta disso, a palavra final sobre o arquivamento de um inquérito sempre será do MP.
No caso em análise, o procurador-geral da República é o chefe do Ministério Público da União, e como ele ocupa o mais alto nível da carreira, ele terá a palavra final sobre o arquivamento de uma investigação, cabendo, neste caso, ao STF homologar esse pedido.
Após a divulgação na imprensa do arquivamento realizado pelo PGR, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) requereu ao STF que o PGR fosse investigado pelo suposto crime de prevaricação, por conta do procurador-geral não ter processado o presidente da República e os demais investigados nessa apuração. Entretanto, esse requerimento viola o nosso Estado Democrático de Direito, vez que o Ministério Público é uma instituição independente e autônoma, de acordo com a nossa Constituição, e seus membros não podem ser punidos por exercerem o seu labor.
Assim, se um procurador processa criminalmente alguém por entender que houve a prática de um crime, este não poderá ser punido por estes fatos, da mesma forma que um membro do MP não poderá sofrer represálias por ter arquivado uma investigação, caso entenda que não houve a prática de crimes.
O Direito não é uma ciência exata, por conta disso há a possibilidade de entendimentos diversos por parte dos operadores do Direito, sejam eles procuradores, advogados ou juízes. Assim, não se pode responsabilizar um procurador por crime de prevaricação caso ele arquive uma investigação ou processe alguém, da mesma forma que um juiz não poderá ser punido por ter absolvido ou condenado alguém. Tanto o Magistrado como o integrante do MP exercem funções constitucionais de forma independente, e suas ações jurídicas são adotadas de acordo com a lei, a constituição e seu livre convencimento. Somente a demonstração cabal de má-fé poderá ensejar uma responsabilização desses operadores do Direito, mas essa eventual má-fé deverá estar amplamente amparada em evidências.
Para que a segurança jurídica prevaleça e o Brasil seja de fato reconhecido como um Estado Democrático, e de Direito, as instituições devem ser independentes, fortes e respeitadas, e esse respeito decorre principalmente da observância do que está previsto na Constituição, pois somente ela poderá balizar qualquer atitude das autoridades públicas, sejam estas integrantes do Ministério Público, do Poder Judiciário, do Poder Executivo, ou do Poder Legislativo. Cada um cumprindo seu papel, sem querer invadir ou exorbitar poderes e prerrogativas de outras instituições, estaremos de fato dando vida à democracia. O contrário somente trará atraso, instabilidade e caos.
Por Thaméa Danelon, Procuradora da República (MPF) desde dezembro de 1999, ex-coordenadora do Núcleo de Combate à Corrupção em São Paulo/SP; ex-integrante da Lava Jato/SP; mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo (ESMPSP); professora de Direito Processual Penal e palestrante.