04/08/2022 06:03
”Sendo o Ministério Público uma entidade constitucional, não cabe a membros do Poder Legislativo pretender politizar uma atividade técnica e jurídica”
Em abril de 2021, o Senado Federal instaurou a CPI da Covid-19 com o intuito de apurar as ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia e o colapso da saúde no estado do Amazonas. Ao longo de aproximadamente seis meses de investigação, a CPI ouviu mais de 60 pessoas, entre testemunhas e investigados; decretou a quebra de sigilo bancário de diversas pessoas físicas e jurídicas; e até efetuou uma prisão em flagrante de um investigado, que, de acordo com a lei, não poderia ser preso por falso testemunho, pois investigado não é testemunha, e não existe o crime de perjúrio no Brasil.
Ao final das apurações, em outubro de 2021, foi elaborado um relatório com mais de 1.200 páginas, concluindo pelo indiciamento de 78 pessoas, entre elas o presidente da República, ministros, ex-ministros de Estado, três filhos do presidente, deputados federais, médicos, empresários e o governador do Amazonas. Duas empresas que firmaram contrato com o Ministério da Saúde – a Precisa Medicamentos e a VTCLog – também foram responsabilizadas. Os crimes que levaram aos indiciamentos foram os de prevaricação, charlatanismo, epidemia com resultado morte, infração a medidas sanitárias, emprego irregular de verba pública, incitação ao crime, falsificação de documentos particulares, crimes de responsabilidade e crimes contra a humanidade.
O intuito de politizar uma atividade técnica e jurídica apenas desprestigia a instituição do Ministério Público, que tem como funções a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
O relatório final foi aprovado por 7 votos a 4 em 26 de outubro de 2021, e, no mesmo mês, foi encaminhado ao procurador-geral da República (PGR) para adoção das providências cabíveis. Ao se manifestar sobre a documentação, o chefe do Ministério Público afirmou que os senadores não haviam entregado as provas que deveriam acompanhar o relatório da CPI, pois havia recebido apenas um HD com 10 terabytes de “informações desconexas e desorganizadas”.
Em entrevista em fevereiro de 2022, o procurador-geral da República Augusto Aras declarou que o tamanho do material entregue pela CPI não indicaria, necessariamente, a existência de embasamento jurídico. Segundo ele, “entregar um HD com 1 ou 10 terabytes não significa fazer a demonstração de que aqueles elementos probantes coligidos na fase CPI teriam pertinência com os fatos e com os indiciados”.
Agora, em julho de 2022, a vice-procuradora-geral da República Lindôra Araújo requereu o arquivamento de diversas investigações provenientes do relatório da CPI da Covid. Em suas razões de arquivamento, a PGR entendeu que não havia evidências que demonstrassem a real existência dos crimes de infração à medida sanitária, charlatanismo, emprego irregular de verbas públicas, crime de epidemia, dentre outros, bem como prova da existência desses ilícitos – em Direito chamada de materialidade. Também estavam ausentes os indícios de autoria, ou seja, os elementos mínimos de que os investigados seriam os responsáveis pelos supostos crimes indicados no relatório da CPI. Assim, diante da inexistência de justa causa para o início de uma ação penal – ou seja, pela falta de elementos concretos que autorizassem a abertura de um processo criminal contra os investigados e até mesmo a possibilidade de continuidade das apurações – a PGR promoveu o arquivamento das investigações.
Como os arquivamentos foram realizados pela autoridade máxima da instituição do Ministério Público, não caberá ao STF discordar com eles, pois, de acordo com a lei brasileira, a palavra final sobre o arquivamento de uma investigação criminal é do Ministério Público. Assim, competirá ao Supremo apenas homologar os arquivamentos realizados pela PGR.
Mesmo assim, alguns senadores integrantes da CPI não concordaram com esses arquivamentos, e protocolaram perante o STF um pedido de abertura de uma investigação contra a vice-procuradora-geral pelo crime de prevaricação. Esse crime está previsto no artigo 319 do Código Penal, e ocorreria quando o servidor público retarda ou deixa de praticar, indevidamente, determinado ato de ofício (ato que deveria realizar), e essa conduta é movida para satisfazer um interesse ou sentimento pessoal.
É importante deixar claro que os membros do Ministério Público têm a chamada independência funcional, o que quer dizer que eles são livres e independentes para formar suas convicções jurídicas sobre as investigações e processos em que atuam. Por isso, não há que se falar em crime de prevaricação, pois as peças de arquivamento da PGR estão devidamente fundamentadas com argumentos jurídicos e técnicos, havendo, assim, embasamento que sustente os arquivamentos realizados.
Não se pode querer investigar ou processar um integrante do Ministério Público quando ele cumpre a sua função e conclui que não há a prática de um crime que autorize o início de um processo criminal. Importante ressaltar que os membros do Ministério Público não são agentes políticos, mas agentes públicos, que ingressaram em suas carreiras através de um concurso público, sem qualquer indicação política. O intuito de politizar uma atividade técnica e jurídica apenas desprestigia a instituição do Ministério Público, que, de acordo com o artigo 127 da Constituição Federal, tem como funções a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.
Um dos fundamentos básicos de uma democracia é o respeito aos poderes da República e das instituições que integram a Justiça, e sendo o Ministério Público uma entidade constitucional, não cabe a membros do Poder Legislativo pretender politizar uma atividade técnica e jurídica. De acordo com o artigo 129 da CF, cabe ao Ministério Público zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia.
Por Thaméa Danelon, Procuradora da República (MPF) desde dezembro de 1999, ex-coordenadora do Núcleo de Combate à Corrupção em São Paulo/SP; ex-integrante da Lava Jato/SP; mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo (ESMPSP); professora de Direito Processual Penal e palestrante.