O Brasil necessita aumentar urgentemente sua autossuficiência industrial e tecnológica para fins de defesa. Este deveria ser um tema abordado por todos os candidatos presidenciais. Escreve Eduardo Siqueira Brick
18/08/2022 06:39
”Quando se trata da soberania do país, não é sensato se ter elevada dependência de meios de defesa importados, que sejam essenciais para garanti-la”
Estão definidos os candidatos à eleição presidencial para o período 2023-2026. Uma eleição presidencial é o momento em que existe uma maior motivação da sociedade para apreciar as diversas visões e propostas sobre as questões mais relevantes para os destinos do país. Uma dessas questões, que nunca foi objeto de atenção por parte dos partidos políticos e seus candidatos, é a relacionada à defesa da independência e soberania do Brasil. Em particular, ao preparo da capacidade militar necessária a essa defesa.
Quando um país enfrenta ameaças de caráter militar, todas as atenções se voltam para o emprego da capacidade de defesa que desenvolveu. Entretanto, essas situações são raras na existência da maioria dos países, em especial daqueles que estão localizados em regiões com reduzido histórico de conflitos. Este fato leva, em muitos casos, a um descuido com o preparo da defesa. O Brasil é um claro exemplo disso. Nem a sociedade nem o poder político têm considerado como relevantes as questões relacionadas ao preparo da capacidade de defesa do país.
O paradoxo é que a história ensina que essa possibilidade sempre existe e essa atividade deve ser desenvolvida durante os períodos de paz. O preparo da capacidade de defesa demanda décadas de esforços continuados e, cada vez mais, depende de capacidade industrial e de inovação tecnológica. Portanto, é a atividade mais estratégica para a defesa da soberania do país e deveria ser amplamente debatida nas campanhas presidenciais.
Por isso, é preciso chamar a atenção da sociedade para essas questões estratégicas, que são cruciais para a soberania, a independência e o próprio desenvolvimento industrial e tecnológico do Brasil.
Dois acontecimentos ocorridos nos últimos dois anos, pandemia de Covid-19 e a Guerra na Ucrânia, vieram confirmar três ensinamentos milenares sobre o preparo da defesa, mas frequentemente esquecidos.
O primeiro ensinamento é que quando se trata de sobrevivência, considerações econômicas ou fiscais ficam em segundo plano, e todas as energias e recursos são direcionados para enfrentar os desafios que se apresentarem. Isso aconteceu no Brasil no combate à Covid e acontece em todos os conflitos armados entre Estados, como se pode observar na atual guerra na Europa. Entretanto, em períodos de paz, os recursos orçamentários são sempre escassos e é muito importante racionalizar as estruturas do Estado, buscar reduzir despesas desnecessárias e ter atenção aos custos de oportunidade.
O segundo ensinamento é que quando se trata da soberania do país, não é sensato se ter elevada dependência de meios de defesa importados, que sejam essenciais para garanti-la. O que se observa na guerra entre Rússia e Ucrânia é que a primeira, por ter uma grande autonomia tecnológica e industrial no setor de defesa, pode defender seus interesses vitais sem ter que recorrer ao auxílio de outros países, sendo capaz de resistir aos rigorosos embargos que foram feitos. Já a Ucrânia, por não ter essa autonomia, depende totalmente da Otan para enfrentar a Rússia. Essa dependência implica, obviamente, em menor liberdade para tomar decisões e defender seus interesses.
O terceiro ensinamento milenar é que países não têm inimigos ou amigos eternos. O amigo de hoje pode ser o inimigo de amanhã e vice-versa. A situação da Ucrânia exemplifica muito bem essa realidade. Oriunda do desmembramento da ex-União Soviética, a capacidade militar da Ucrânia era, no início do conflito, quase que totalmente dependente de armas e tecnologias de origem russa. Com o conflito, essa fonte de suprimento foi cortada. As circunstâncias geopolíticas permitiram o suprimento de suas necessidades militares por parte de países da Otan, o antigo adversário. Mas isso nem sempre é possível.
Portanto, quando se trata de segurança e soberania, uma grande dependência em meios de defesa fornecidos por qualquer país estrangeiro, mesmo que em determinado momento possa ser considerado aliado, representa inaceitável vulnerabilidade.
Esta é uma situação completamente diferente da que ocorre em outras atividades visando a interesses econômicos e que funcionam segundo regras típicas de mercado. Essas podem contar com grande diversidade de fontes de suprimentos, sem que sejam submetidas a bloqueios e restrições, como ocorre no setor de defesa. Exemplos são as atividades voltadas à manufatura de bens de consumo,e outras em que considerações sobre eficiência produtiva e competitividade são predominantes.
A guerra na Ucrânia também evidencia um movimento mais amplo, que vem se intensificando, de expansão e fortalecimento da aliança militar dos países ocidentais. Criada originalmente para se contrapor à União Soviética, a Otan expandiu sua área de atuação para dar o suporte militar às agendas de interesse das potências ocidentais.
A declaração dos chefes de Estado membros da Otan, na reunião da cúpula do conselho da organização, realizada na Espanha em junho de 2022, pode ser interpretada como uma securitização da questão climática, colocando-a na categoria de ameaça à segurança desses países, conforme se pode ler no seu item 12. Inúmeras declarações de governantes de países importantes da Otan, que questionam a soberania do Brasil sobre o uso dos seus recursos naturais, são motivo de preocupação. Mesmo que muitos possam considerar que a hipótese de um eventual conflito envolvendo o Brasil seja muito improvável, ela é perfeitamente plausível e a boa prática do planejamento da defesa obriga a que seja levada em consideração com muita seriedade.
Parece irrefutável que se o Brasil tiver em algum momento um enfrentamento envolvendo membros dessa organização, ou um conflito com outras nações por ela apoiada, terá imediatamente suas principais fontes de insumos e de armas cortados e ficará à mercê da vontade de seus eventuais adversários. Isso porque as alternativas existentes, em países dos Brics, por exemplo, não são compatíveis com as doutrinas de emprego e os sistemas de armas que o Brasil utiliza e estão muito distantes geograficamente. Portanto, são mais vulneráveis a bloqueios marítimos e aéreos. A Argentina padeceu desse problema na guerra das Malvinas e isso já seria suficiente para servir como lição.
Ora, este possível cenário traz um grande problema para a defesa do Brasil, pois a capacidade militar do país, há décadas, tem significativa dependência em relação a tecnologias e produtos de defesa fornecidos e controlados com muito rigor por países da Otan, mesmo em tempos de paz.
Então, uma questão crucial que se apresenta para o Estado brasileiro é como alcançar, em um prazo razoável, de poucas décadas, um mínimo de autossuficiência em capacidade militar, para poder enfrentar ameaças dessa natureza e magnitude.
Existe uma questão associada a esta, que tem um encaminhamento mais amplo e que extrapola as preocupações com a defesa, mas que não pode deixar de ser considerada. Trata-se da capacitação industrial e tecnológica do país como um todo, porque, obviamente, a autossuficiência em capacidade militar tem grande dependência dela. Por outro lado, é sabido que capacidade militar, no sentido amplo que será descrito mais adiante neste texto, embora não seja o único, tem sido um dos motores mais importantes para o desenvolvimento industrial e tecnológico do país, pelo fato de depender de produtos baseados em alta e média alta tecnologias, quase sempre de uso dual, civil e militar.
Este fato exige que o país desenvolva e sustente indústrias de defesa capazes de concebê-los e fabricá-los. Essa capacitação industrial, construída para atender às necessidades específicas da defesa, e não a um “mercado” genérico, e que engloba complexas instalações, bens de capital sofisticados, recursos humanos altamente qualificados e o domínio de altas e média altas tecnologias, ela própria tem emprego dual. O caso da Embraer é emblemático para ilustrar essa assertiva.
Segundo dados da Fiesp, a produção industrial do Brasil, depois de atingir um ápice de 21,8% do PIB em 1985, vem caindo sistematicamente desde então. Dados atuais mostram que em 2021 ela baixou para o patamar de 10,5%. Em termos relativos a outros países, a queda é ainda mais expressiva. Ainda segundo dados da Fiesp, em 1980 o produto industrial brasileiro era equivalente a 117,3% da soma dos produtos industriais da China, Coreia do Sul, Malásia e Tailândia. Em 2011 esse percentual já havia baixado para 10%.
Os dados referentes a recursos humanos qualificados também não são favoráveis ao Brasil. Segundo dados da CIA, FMI e OCDE, em 2011 a quantidade de engenheiros e cientistas por 1 milhão de habitantes era de cerca de 500 no Brasil, enquanto em países como Suécia, Singapura, Noruega, Dinamarca, Finlândia e Japão, por exemplo, esse número é superior a 5 mil.
O cenário acima esboçado justifica a aceitação da premissa de que o Brasil necessita aumentar urgentemente sua autossuficiência industrial e tecnológica para fins de defesa. Este deveria ser um tema abordado por todos os candidatos presidenciais.
A materialização desse projeto exige a formulação de um objetivo estratégico, que seja considerado prioritário, que defina resultados concretos a serem alcançados em um prazo compatível com a urgência que o assunto requer e seja exequível.
Esse objetivo deve ser o de alcançar, em um período de 24 anos (correspondente a seis períodos de governo) uma significativa autossuficiência em altas e média altas tecnologias críticas para o desenvolvimento de produtos de defesa considerados estratégicos e a criação e/ou consolidação das empresas estratégicas, capazes de conceber, desenvolver, fabricar e manter esses produtos.
Por Eduardo Siqueira Brick, Ph.D., é professor titular aposentado da Universidade Federal Fluminense, CMG reformado do Corpo de Engenheiros e Técnicos Navais da Marinha do Brasil, membro da Academia Nacional de Engenharia (ANE) e pesquisador do Núcleo de Estudos de Defesa, Inovação, Capacitação e Competitividade Industrial (UFFDEFESA) e do Centro de Defesa & Segurança Nacional (CEDESEN), do qual também é membro do Conselho Consultivo.