É óbvio a qualquer homem experiente que a inteligência não é garantia de sabedoria, moralidade, ou mesmo decência básica. O homem inteligente pode se revelar como o pior ou o mais obtuso justo por ser esperto e maquinador. Escreve R.J. Snell
30/08/2022 14:56
”Os inteligentes são valorizados, admitidos, contratados, promovidos e elogiados, e seus produtos nos governam e dirigem. Mas que tipo de inteligência? A honrosa ou a desonrosa?”
Por muito tempo, mantive um grupo para discutir política e teologia com amigos próximos. Como sói acontecer, dois de nós concordávamos quanto à maioria dos assuntos e formávamos uma aliança contra os demais. De brincadeira, mas um pouco a sério, nos referíamos a nós mesmos como o “Time da Inteligência”. É amigável e engraçado, ainda que um pouco ridículo.
Quem poderia ser contra a inteligência? Quem gostaria de ser obtuso ou lerdo, ou, pior ainda, passar por obtuso e lerdo?
Em sua Ética a Nicômaco, Aristóteles descreve a inteligência ou entendimento (nous) como a virtude intelectual pela qual apreendemos os primeiros princípios. Tais princípios são conhecidos, mas, como são os primeiros, não podem ser demonstrados ou embasados por outras premissas mais fundamentais. O intelecto os captura como verdadeiros com um lampejo que não é nem uma intuição, nem uma conclusão. Assim, todos os outros raciocínios teóricos dependem da inteligência, que provê os princípios fundamentais.
Ainda assim, é óbvio a qualquer homem experiente que a inteligência não é garantia de sabedoria, moralidade, ou mesmo decência básica. O homem inteligente pode se revelar como o pior ou o mais obtuso justo por ser esperto e maquinador. Assim como, cedo ou tarde, concluímos que gente interessante é legal, mas os homens sólidos e sérios são amigos melhores, talvez a maturidade requeira que moderemos nossa admiração por intelectuais, pela clerezia acadêmica e demais tipos inteligentes.
Variedades de estupidez
Conhecido pelo seu clássico modernista O Homem Sem Qualidades, Robert Musil (1880–1942) fez uma palestra na ansiosa Viena de 1937, “Sobre a Estupidez”, que é útil aqui. A “noção [mais] geral de estupidez”, sugere ele, é algo como a incapacidade ou inabilidade. Mas, num tempo de “convenções de classe média”, a concepção da estupidez é estreitada, confinada ao domínio do “trabalho mental” e dos “êxitos racionais”. Pensa-se que a estupidez descreva “quem é ‘um pouco fraco da cabeça’ “. Se bem que uma dificuldade de entendimento possa ser ocasião para humor, Musil acertadamente aponta que não há nada de desonroso na obtusidade. “A estupidez honorável é um pequeno embotamento da compreensão, […] é pobre nas ideias e nas palavras”, mas também tem “um grande quinhão da vida de bochechas enrubescidas” e é “encantadora”. Sam Gamgee vem à mente, ou então Bertie Wooster. Eles podem precisar dos dedos para fazer contas, mas não há nada de desonroso nisso.
Se a estupidez honrosa é uma fraqueza no entendimento, a versão desonrosa “é, de longe, a mais perigosa”. Não é tanto a ausência de inteligência, senão um “fracasso da inteligência”. A inteligência está presente, mas fora de equilíbrio, “malformada e em atividade errática”, doente de algum jeito. A “alta estupidez” é uma “incultura” que causa não só uma obtusidade da mente, como também uma cegueira ou uma recusa a ver.
Musil sugere três qualidades primárias desse tipo de estupidez inteligente. Primeira: alega êxito e facilidade em questões além da sua competência. Segunda: dá espaço às emoções às expensas da razão. Terceira: é esperta o bastante para inventar racionalizações para as próprias opiniões, não importando quão bizarra é a opinião, nem quão tola é a desculpa.
Como resultado, a inteligência não orienta para o conhecimento verdadeiro dos primeiros princípios e para a realidade, como na visão de Aristóteles, senão confunde o espírito. Resulta numa fuga da realidade, com todas as patologias culturais e espirituais que vêm com a vida numa realidade fictícia. É claro que, dada a unidade do ser humano, a estupidez desse tipo afeta a sensibilidade, desancorando o gosto e as emoções. Tal inteligência se torna uma perigosa doença d’alma e “põe em risco a própria vida”.
Cultura da inteligência
A nossa era decerto privilegia o trabalho mental, a classe criativa, o especialista, o intelectual, o homem de letras e símbolos: em resumo, a nossa cultura é uma cultura da inteligência. Os inteligentes são valorizados, admitidos, contratados, promovidos e elogiados, e seus produtos nos governam e dirigem. Mas que tipo de inteligência? A honrosa ou a desonrosa?
Nossos brilhantes luminares reivindicam competência em coisas que estão claramente além da capacidade das políticas e do Estado? Os nossos melhores e mais poderosos são governados pela razão ou pela emoção? Nossas elites oferecem racionalizações extravagantes para evidentes bizarrices? As instituições mais importantes de nossa sociedade domam e dirigem a inteligência para servir à realidade ou a uma revolta incultural?
Agora mesmo, vê-se o Ocidente dominado pela exaltação. Nossas boas instituições carecem de convicção, enquanto as piores estão exaltadas pela paixão e ameaçando a nossa ordem social. A irracionalidade dos nossos especialistas em suas respostas à covid lesou a educação e o bem-estar de nossas crianças, empurrou-nos uma crise de saúde mental, fomentou uma violência niilista e destruiu a riqueza com a inflação. Uma tremenda mania destrutiva de experimentação humana continua com o contágio de disforia de gênero de início rápido. Não temos nenhuma ideia do que os bloqueadores de puberdade causarão no longo prazo, mas mesmo assim nossos guardiães culturais silenciam quem faz perguntas relevantes. É uma praga de desordem social e caos, e muito disso é incitado pelas abstrações extravagantes dos inteligentes.
Roger Scruton sugeriu que muitas “concepções liberais grandiosas” relativas a direitos e liberdades são meras exaltações que deixam “morte e destruição no final”. Para Scruton, que era um conservador, as abstrações sempre trazem o bafo da alta estupidez, já que são desconectadas da realidade e inventadas. Em vez de abstrações construídas com argúcia (e inteligentes ao seu modo), Scruton sugeriu que “nós, seres racionais, precisamos de costumes e instituições que estejam fundados em algo diferente da razão, se quisermos usar nossa razão com um efeito benéfico.” Esta, pensou ele, é a “principal contribuição do conservadorismo” para um entendimento da vida humana, bem como uma verdade essencial.
Buscar sanidade
Dada a confusão, é compreensível a tentação entre alguns à direita de responder a tais abstrações erradas com suas próprias teorias e projetos abstratos, ou grandes esquemas. No entanto, isso mimetiza a “alta estupidez” responsável por fragmentar as instituições, estruturas, costumes e hábitos dos quais a razão depende genuinamente, como argumentou Scruton. Em vez disso, devemos valorizar a sanidade bem mais do que fazemos agora. Nos acostumamos tanto a elogiar o “trabalho mental” (na expressão de Musil), que caçamos os espertos, recrutamos e promovemos os meninos brilhantes, enquanto negligenciamos os jovens sólidos. Decerto um homem de bom juízo, caráter firme e retidão inamovível é tão elogiável quanto o homem inventivo e ágil — e, na vida social e política, é muito mais importante.
O homem são é invariavelmente um homem de costumes, de deferência ao juízo coligido pela longa experiência, inclusive a experiência dos mortos. Afinal de contas, eles sabiam alguma coisa e continuam a exercer o juízo sobre as maneiras, mores e hábitos de um povo. A juventude sã possui uma espécie de conhecimento congênito quanto ao que se deve fazer, e assim mantém a estabilidade, que é uma condição básica para o autogoverno racional. A revolução e a ruptura, tão prezada pelos inteligentes com seus planos e projetos, demanda fluidez, liquidez e maleabilidade: habilidades, todas estas, dos muito inteligentes, bem como geralmente destrutivas para a sociedade decente e ordeira. Os disruptivos do Vale do Silício florescem enquanto São Francisco colapsa, por exemplo.
O homem são confia nos feitos civilizacionais. Não é por acaso que a visão de Platão da educação não começa com filosofia e esperteza, mas com a formação de bom juízo e gosto. Ao cabo o filósofo deve governar, diz ele, mas o governante emerge daqueles que já foram educados no bom juízo; isto é, o governante deve ser considerado são, sensível, de modo que não sucumba à proposta novidadeira (porém insensata) que destrua a ordem e o bem-estar sociais. Mantém um grande apreço pela guarda da herança civilizacional, esta mestra prosaica que sabe que o governante tem de passar adiante uma tradição cultivada para os seus pupilos em vez de despedaçá-la.
A razão teórica, tão necessária e maravilhosa dentro dos seus limites, é pior do que meramente errônea na vida política e social. Torna-se estúpida, e muito.
Para a maioria dos homens, ter o seu modo de vida costumeiro “problematizado” não leva a nenhum lampejo ou clareza, senão a confusão e vertigem. Uma quantidade grande demais de jovens teve o tapete sob os seus pés puxado por seus professores inteligentes. Sem surpresas, o resultado é alienação, niilismo, raiva e desespero. O “fracasso em deslanchar” que assombra tantos jovens, incluindo o medo de “virar adulto” e a rejeição à ideia de crescer, casar e ter filhos, é agravado pelos mais espertos entre nós. Amiúde nos referimos erroneamente a isso como sendo o fracasso das elites, mas elas destruíram mais do que fracassaram.
Privilegiamos demais a inteligência. Ou, antes, privilegiamos uma inteligência muito adequada para o mundo da ciência — com suas dúvidas, experimentos e teorias —, mas isso não pode entender as coisas humanas. Nossas tentativas de usar na marra uma ferramenta que é ótima em outra esfera causaram graves prejuízos. A razão teórica, tão necessária e maravilhosa dentro dos seus limites, é pior do que meramente errônea na vida política e social. Torna-se estúpida, e muito. Pensemos nas abstrações viciosas que prejudicam tantos dentre os mais vulneráveis e dependentes — na ideologia de gênero e no utopismo político, para ficar só com dois exemplos.
Aristóteles era mais sábio. Diferentes ordens da realidade requerem diferentes ordens do intelecto que lhe sejam adequadas, e o que ele chama de homem bem educado — o homem são — conhece a diferença. A sabedoria prática do homem são é a inteligência do tipo adequado, uma inteligência relativa à ação. O homem educado desse jeito “conhece os primeiros princípios” e, de fato, vive segundo a “inteligência e ordem correta”, em sua expressão.
A sanidade é a inteligência que apreende os princípios governantes da ação. Tais princípios são universais; governam todas as ações humanas. Mas não são teóricos, e não é o esperto, senão o bom, que os apreende com maior facilidade.
Temos muita necessidade de homens sãos e mulheres sãs. Enquanto não os valorizarmos e elogiarmos tanto quanto estimamos os espertos, e enquanto os sãos não governarem e legislarem acima dos espertos, nossos problemas não terão fim.
©2022 The Public Discourse. Original em inglês
Por R. J. Snell é editor-chefe do Public Discourse e diretor de programas acadêmicos do Instituto Witherspoon. Anteriormente, ele foi por muitos anos Professor de Filosofia e Diretor do Programa de Filosofia na Eastern University e no Templeton Honors College, onde fundou e dirigiu o Ágora Institute for Civic Virtue and the Common Good.