Ninguém sabe ao certo como o Brasil estará daqui a um mês, muito menos daqui a um ano. (…) talvez todas as vozes dissonantes já tenham sido democraticamente caladas. Tempos muito estranhos. Escreve Luciano Trigo
07/12/2022 09:13
”É uma transição estranha, muito diferente daquela de 20 anos atrás, quando, apesar das incertezas, havia um clima de esperança e festa”
Enganou-se quem acreditava que o país voltaria ao normal após a eleição, em termos de liberdade de expressão. A voracidade censória continua, com contas e perfis de empresas e pessoas físicas nas redes sociais sendo rotineiramente derrubados ou desmonetizados. É o novo normal: na democracia em vigor, todos são livres para dizer o que pensam, desde que todos pensem como eu.
Nem é preciso ser jornalista: mesmo pessoas comuns estão pensando duas vezes antes de emitir uma opinião diferente, de fazer uma crítica construtiva, de contestar a decisão de uma autoridade ou de postar no Twitter ou no Facebook qualquer coisa que contrarie a narrativa do pensamento único que aos poucos vai sendo imposta, na marra, a todos os brasileiros.
Isso gera a percepção crescente de que não estamos mais vivendo uma situação de normalidade democrática, mas sim a aurora de algo muito diferente da democracia – algo de contornos ainda nebulosos, mas já assustadores. A percepção de muita gente é essa.
O medo corrói e exaspera a alma daqueles que se veem impotentes diante da escalada kafkiana dos acontecimentos e não sabem mais a quem recorrer. Em um primeiro momento, a gente se percebe medindo as palavras, praticando a autocensura para escapar de diferentes formas de cancelamento.
Mas isso cansa, e com o tempo, a se confirmar essa percepção sombria, a tendência é os sobreviventes ficarem quietos mesmo, ou mudarem democraticamente de assunto. Nem todo mundo tem vocação para mártir, e um dia, talvez, todos aprenderemos a ficar democraticamente calados.
Porque calar democraticamente metade da sociedade parece ser o objetivo da outra metade, com o apoio democrático da mídia e da própria Justiça. Tudo em defesa da democracia.
Em uma ditadura declarada seria até mais fácil, porque todos saberiam exatamente o que pode ou não pode ser dito. Mas, no estranho sistema que parece se estabelecer aos poucos no Brasil, os limites do que é e do que não é permitido dizer são difusos, tênues, móveis, voláteis.
Em um sistema assim não há regras claras, porque faz parte do método do Ministério da Verdade estabelecer os crimes e as penas ad hoc, caso a caso, após o fato que será julgado: é necessário que seja assim, porque, na democracia de um lado só, tão ou mais importante quanto o que é dito é quem diz.
“Posso interpelar um político na fila de embarque em um aeroporto?”
“Posso opinar sobre uma decisão de um ministro do Supremo?”
“Posso mentir, caluniar ou ofender um adversário político?”
“Posso manifestar o desejo de que um presidente seja afastado, ou mesmo de que ele morra?”
“Posso contar uma piada ligeiramente misógina ou politicamente incorreta?”
“Posso me aglomerar sem máscara para assistir a um jogo da Copa do Mundo, mas ao mesmo tempo acusar de genocida quem não usa máscara em uma reunião?”
“Posso dar um joinha quando alguém fizer um desabafo sobre a situação do país em um grupo privado de WhatsApp?”
“Posso torcer para que um atleta quebre a perna?”
Hoje a resposta a estas perguntas não é “sim” nem “não”, é um democrático “Depende. De que lado você está? Em quem você votou?”
Se você estiver do lado certo, poderá usufruir plenamente a liberdade de expressão que é inegociável na democracia. Mas, se estiver do lado errado, só terá mesmo o direito de ficar caladinho(a).
Como disse recentemente alguém muito importante, não podemos de forma alguma permitir a volta da censura no Brasil. A não ser, é claro, nos casos em que podemos sim.
E o pior é que muitas pessoas estão comemorando alegremente a escalada da censura, das perseguições e de outros ataques à liberdade.Alguns comemoram por inocência, outros por ideologia, outros, ainda, por deficiência de caráter mesmo – da mesma forma como festejam, por exemplo, a lesão de Neymar na Copa.
Sim, a sociopatia chegou a este ponto: torcer para o melhor jogador da seleção brasileira se machucar, porque é bem feito pra ele. Todo mundo sabe que Neymar representa uma ameaça à democracia.
Então vamos combinar assim: de agora em diante fica decretado que, como aliás já acontece informalmente com artistas, intelectuais e outras celebridades, os ídolos do futebol precisarão de atestado de pureza ideológica para continuar ganhando seu pão. Sem esse atestado, eles serão sumariamente classificados como fascistas e linchados, na praça pública da internet, por um exército de ativistas virtuosos, especialistas na prática do ódio do bem.
É assim que funciona na nova democracia.
E são estas pessoas que dizem que o amor venceu.
É uma transição estranha, muito diferente daquela de 20 anos atrás, quando, apesar das incertezas, havia um clima de esperança e festa
O problema é que no Brasil até o passado é imprevisível, e muita coisa sempre pode acontecer. Como na canção do Cazuza, ainda estão rolando os dados. Mas, diferentemente do que diz a mesma canção, parece que o futuro não repetirá o passado. Porque o tempo não anda para trás.
Pelo menos é o que sinaliza a sequência de expectativas frustradas em curso, neste período de transição que ainda nem chegou à metade mas já está deixando muita gente de cabelo em pé.
É uma transição estranha – e , seguramente muito diferente daquela de 20 anos atrás, quando, apesar das desconfianças e incertezas, havia no país um clima de esperança e festa, de crença na possibilidade de algo novo e melhor acontecendo no Brasil.
Hoje não se vê esperança nem festa, ao contrário: há protestos nas ruas e apreensão crescente dentro de casa, inclusive e principalmente na casa daqueles que votaram no candidato vencedor por nojinho e aversão estética ao presidente que ora se despede, em enigmático silêncio.
Posso estar redondamente enganado e sempre torcerei para o Brasil dar certo, independentemente de quem estiver no poder. Mas a percepção neste momento é de inevitável pessimismo, porque o governo eleito não está demonstrando nem a habilidade nem a agilidade necessárias, sobretudo em momentos de crise, no relacionamento com diversos atores decisivos para o seu êxito ou fracasso futuros. Se não, vejamos:
– Existe a percepção de que o governo eleito não está demonstrando habilidade nem agilidade no relacionamento com o mercado, ao contrário: a cada fala desastrosa e a cada nome especulado para o Ministério da Fazenda, a bolsa cai e a expectativa de inflação sobe. Para piorar as coisas, os nomes que foram vendidos na campanha eleitoral como fiadores de moderação e racionalidade na condução da economia já foram escanteados – ou estão se afastando por conta própria. O mercado reage mal, e é natural que isso aconteça;
– Existe a percepção de que o governo eleito não está demonstrando habilidade nem agilidade no relacionamento com as ruas, ao contrário: continua apostando na narrativa que desqualifica os manifestantes como golpistas, e os protestos como antidemocráticos. Além de não estar colando fora da bolha, essa narrativa só serve para irritar o cidadão comum e acirrar a polarização da sociedade;
– Existe a percepção de que o governo eleito não está demonstrando habilidade nem agilidade no relacionamento com a classe política, ao contrário: a falta de articulação e a aparente bateção de cabeça entre as lideranças que disputam poder tornam cada vez mais remota, por exemplo, a aprovação da chamada PEC da Transição), pelos menos nos termos, no prazo de validade e no valor inicialmente propostos. Enquanto isso, o Centrão acumula poder, sugerindo que não haverá carta branca do Congresso, ainda que a pusilanimidade e o fisiologismo de muitos parlamentares sejam sempre um fator a considerar.
Resta o apoio quase incondicional de dois atores. Sobre o Poder Judiciário já não é mais prudente falar – e alguns episódios recentes sugerem não ser mais prudente sequer um cidadão buscar o socorro da Justiça quando se sentir violado em seus direitos, porque a resposta pode ser uma punição ou, pelo menos, um “Perdeu, mané”.
Sobre a grande mídia, ela ainda aposta na narrativa partidária e militante que prevaleceu durante toda a campanha eleitoral. Mas já começam a pipocar sinais de insatisfação: um editorial de alerta aqui, uma cobrança de responsabilidade fiscal ali, uma mudança de vocabulário acolá, tudo isso sugere que o tom do noticiário político pode mudar muito nos próximos meses, a depender dos acontecimentos.
Fato é que hoje ninguém sabe ao certo como o Brasil estará daqui a um mês, muito menos daqui a um ano. Nem se sabe tampouco quem ainda terá direito à fala: talvez todas as vozes dissonantes já tenham sido democraticamente caladas. O amor terá vencido.
Tempos muito estranhos. Mas, como diz a citada canção do Cazuza, o tempo não para.
Por Luciano Trigo é escritor, jornalista, tradutor e editor de livros. Autor de ‘O viajante imóvel’, sobre Machado de Assis, ‘Engenho e memória’, sobre José Lins do Rego, e meia dúzia de outros livros, entre eles infantis.