Somos livres para dar as nossas respostas, mas as contrárias à verdade serão sempre antinaturais, e, por isso, nos exilarão para sempre em universos paralelos que se devem criar e recriar, Escreve Gustavo Rossetto Mendes Batista
07/12/2022 05:54
“Aquele respeitável Supremo Tribunal Federal dos tempos de Rui, repleto de homens sábios que era, preferiu ficar com o conforto desconfortável da verdade”
Em 1919, em plena campanha presidencial, Rui Barbosa foi impedido de falar aos baianos que o receberam às multidões em Salvador. A censura que recaía sobre ele era, como toda censura, prova em si do poder tectônico de suas ideias: Rui, um velho aos 70 anos, franzino e minúsculo em estatura, era provavelmente o homem mais perigoso da República.
De fato, ao longo de toda aquela década, Rui Barbosa se provara um subversivo. Ainda no crepúsculo das eleições de 1910, Rui passou a acusar os altos juízes da Justiça Eleitoral de um nauseante conluio com as oligarquias dominantes para fraudar as eleições e alçar Hermes da Fonseca, um homem corrupto e inelegível, à Presidência da República. Nessa toada, Rui empunhou uma só bandeira nos anos seguintes: a da necessidade de refundação do pacto político do país diante da perda de legitimidade dos poderes constituídos.
Não faltavam, então, boas intenções – como aquelas das quais o inferno está cheio – para calar o grande Rui Barbosa. Rui era, aos olhos turvos do establishment da Primeira República, um golpista antidemocrático, que espalhava mentiras e teorias da conspiração capazes de provocar a ruína das estruturas da nação e trazer a ordem política vigente abaixo. Cerraram sobre ele, então, a grande ignomínia: proibiram o velho Rui Barbosa de falar. Rui recorreu, então, ao Supremo Tribunal Federal.
A Suprema Corte se viu em maus lençóis. O habeas corpus que se lhe apresentava tinha paciente nobre – o maior dos brasileiros, segundo Aliomar Baleeiro – e, portanto, não poderia ser varrido para debaixo do tapete sem grande escândalo. Mas, se desse permissão para Rui falar, o STF não só desagradaria às classes dominantes – inclusive aos altos juízes da Justiça Eleitoral – como alargaria o caminho para uma potencial revolução no país.
Porém, entre fatos e versões, uma verdade se impunha: a Constituição concedia ao grande Rui, e a todos os outros brasileiros, fossem quais fossem as suas ideias – certas ou erradas, agradáveis ou desagradáveis, inofensivas ou perigosas – a mais plena liberdade de expressão. Contanto que não empunhasse armas de fogo, Rui tinha o direito constitucional de lançar mão de sua arma mais letal: a palavra livre. E o Supremo Tribunal Federal sabia que, por mais antidemocráticas e golpistas que as palavras de Rui pudessem soar aos ouvidos da elite, antidemocrático e golpista mesmo era negar-lhe o uso da voz.
Também sabia a Suprema Corte que a proclamação daquela verdade que protegia Rui Barbosa separaria – para sempre – os verdadeiros democratas dos democratas de fachada; os amantes da justiça dos amantes das ideologias; os humildes dos soberbos. Porque é isso que a verdade faz: divide. Não porque isso seja da sua natureza. A verdade, em si, é inofensiva. Mas porque alguns de nós, por não tolerarmos a ousadia inocente da verdade em não se dobrar às nossas vontades, criamos um universo paralelo por meio de uma manobra quântica: a de evitar olhar para a verdade, para que as funções de onda não se colapsem e a verdade jamais passe da potência ao ato.
A verdade é moral, e por isso ocupa todos os universos possíveis, especialmente aqueles que forem criados para eliminá-la, porque, neles, ela será o pano de fundo elementar, a razão de ser, a premissa negativa sobre a qual se construirão todas as mentiras necessárias para manter aquele universo de pé.
Sim, a verdade é tão escandalosamente objetiva, tão naturalmente evidente que, embora os físicos acreditem que cada um de nós habite o seu universo particular, e muito embora 100 anos tenham se passado desde a censura recaída (e levantada) sobre Rui Barbosa, todos vocês, enquanto me leem, possivelmente estão sentindo a mesma verdade se manifestar dentro de vocês a respeito de outros fatos mais atuais.
E é por isso que esse texto é incensurável. Porque a verdade não precisa ser dita. Ela simplesmente é. E, porque é, manifesta-se apesar de nós mesmos e dos universos de mentira que queiramos criar. Não há nada que os tiranetes do mundo possam fazer a respeito disso; aliás, se fizerem, apenas confirmarão que instintivamente sabem do que estamos falando e que, portanto, estamos falando da verdade.
Aquele respeitável Supremo Tribunal Federal dos tempos de Rui, repleto de homens sábios que era, preferiu ficar com o conforto desconfortável da verdade. Concedeu ao grande Rui Barbosa o salvo-conduto para falar – e, depois que Rui Barbosa falou, o Brasil nunca mais foi o mesmo.
Hoje, se por um mero acaso vivêssemos situação semelhante, poderíamos nos perguntar: queremos estar com a verdade ou queremos dividir o Brasil em dois universos, um dos quais eternamente condenado a se reconstruir todos os dias sobre a mentira que está em sua fundação? Queremos ser verdadeiros democratas, verdadeiros amantes da justiça e humildes diante da verdade, ou preferiremos estar com aqueles que desfilam cabeças reluzentes por fora enquanto obscuras por dentro, e que têm mãos com capacidade ímpar de manipular e subtrair? E, mais importante, podemos confiar que o Supremo Tribunal Federal tem compromisso com a democracia?
Somos livres para dar as nossas respostas, mas as contrárias à verdade serão sempre antinaturais, e, por isso, nos exilarão para sempre em universos paralelos que se devem criar e recriar, incansavelmente, todas as manhãs, mas que – como os regimes de mentira do século XX bem nos provaram – invariavelmente desabarão sob o próprio peso e em cima de nossas cabeças. Então: estaremos com a verdade, ou faremos aquela letra – o H, de Hermes da Fonseca?
Por Gustavo Rossetto Mendes Batista é advogado.