O político deve praticar uma “política que desvie, a tempo, a trajetória da curva em direção à catástrofe”, que é tanto o risco da desigualdade social, da guerra e da violência permanente, da injustiça e da intolerância. Escreve Jelson Oliveira
11/12/2022 15:38
“Como filho da terra, do seu povo e dos interesses da comunidade da vida extra-humana como um todo, o político deve fazer de seu trabalho um serviço à causa dessa vida coletiva”
Passada a mais importante e a mais tensa eleição do período democrático brasileiro, devemos agora nos perguntar o que é ser um político, por que tanta gente se candidata a um cargo público e, mais ainda, o que eles assumem quando são eleitos e o que é legítimo esperar dessas pessoas.
Há muitas formas de abordar essas questões, que são muito complexas e até mesmo polêmicas. Uma coisa, contudo, é certa: ser um político, em sentido “profissional”, ou seja, assumir um papel, um cargo ou uma função no ambiente da política, exige uma vocação e uma responsabilidade que precisam ser reconhecidas, primeiro por quem a assume e, segundo, por todos os cidadãos e cidadãs que escolhem essa pessoa para representá-las nas instâncias das decisões políticas.
O filósofo alemão Hans Jonas considera que essa vocação deve ser pensada não apenas do ponto de vista dos interesses do presente, mas também das gerações do futuro, que dependem das decisões que nossa sociedade toma agora. Por isso, para ele, uma das questões mais centrais da vocação do político é o cuidado ambiental. Para Jonas, uma das primeiras coisas a se destacar é que o político é isso mesmo: um ser humano vocacionado para a coisa pública. Isso significa que seus interesses e anseios privados e particulares estão submetidos aos interesses da res publica, ou seja, da coletividade que ele passa a representar.
Ele não é mais uma pessoa privada, mas uma pessoa pública. E como tal, ou seja, como político vocacionado para o bem público, deve assumir entre seus objetivos o cuidado com “a totalidade da vida da comunidade”, escreve Jonas na sua obra O princípio responsabilidade, de 1979. Ou seja, nesse caso, a responsabilidade não seria apenas com as gerações do presente e nem sequer apenas com as demais pessoas humanas. Para Jonas, a responsabilidade do político em nossos dias impõe tanto o cuidado com as políticas sociais e a garantia da justiça e da dignidade para os seres humanos, quanto a garantia da existência das demais formas de vida; e ela se dirige não somente com aqueles que vivem no presente, mas também com as gerações do futuro. É isso o que torna, portanto, a atividade política atual tão complexa e tão urgente ao mesmo tempo: o governo de agora é para agora e é também para depois.
Isso significa que essa é uma forma nova do antigo lema de que ter o poder é assumir a responsabilidade e “ela se estende da existência física até aos mais elevados interesses, da segurança à plenitude, da boa conduta à responsabilidade”. Sendo vocacionado para a vida pública, tal indivíduo deve ser motivado por um afeto que o faz, em comparação à autoridade parental, “filho do seu povo e da sua terra (do seu grupo social e assim por diante), por isso ‘irmanado’ com todos aqueles que compartilham esses laços – os vivos, os que virão e mesmo os que morreram”, escreve Jonas. Isso significa que todo político nasce de uma comunidade política e é ela (com a qual ele se sente irmanado) que passa a orientar a sua vida pública.
Como filho da terra, do seu povo e dos interesses da comunidade da vida extra-humana como um todo, o político deve fazer de seu trabalho um serviço à causa dessa vida coletiva. Por isso, Jonas afirma que o paradigma da responsabilidade política é a responsabilidade parental: embora o político não seja o progenitor ou o criador da comunidade política (como o pai o é da família que ele criou), é certo que o homem público deve se reconhecer como um filho, ou seja, como alguém que mantém com sua coletividade um vínculo afetivo que passa a engendrar a sua obrigação para com essa comunidade. E esse é um vínculo afetivo baseado no sentimento de irmandade que ele sente, seja com os seus iguais, aqueles cujas causas ele tomou como suas, sejam eles outros seres humanos ou outros seres vivos, como as plantas e os animais.
Por isso, para Jonas, o político deveria manter uma “identificação emocional com o coletivo, um sentimento de ‘solidariedade’”, dado que os assuntos coletivos precisam sempre de um indivíduo assim vocacionado. Nascido do coração de seu povo e identificado afetivamente com sua gente e com sua terra, o político traduz os grandes ideais e os mais importantes desafios de seus conterrâneos – os “terranos”, que são todos os seres vivos que dependem da ação política, incluídos aí os animais e os vegetais, com os quais o político deve se manter vinculado.
Nesses termos, o político deve praticar uma “política que desvie, a tempo, a trajetória da curva em direção à catástrofe”, que é tanto o risco da desigualdade social, da guerra e da violência permanente, da injustiça e da intolerância de seres humanos contra outros seres humanos, quanto o risco de extinção das espécies animais e vegetais e, com isso, da própria humanidade. Jonas chama atenção, em outras palavras, para o fato de que aqueles e aquelas que entre nós se sentem vocacionados para a política, não devem deixar de fazê-lo desde que estejam vinculados num compromisso de solidariedade com sua gente e com a natureza em geral, que precisa ser preservada para que a própria política, como arte do bem viver, possa se manter no futuro.
Isso porque, todos sabemos, se não forem tomadas as medidas urgentes que precisam ser tomadas agora, a humanidade entrará em uma era de sacrifícios na qual, talvez uma das primeiras coisas a serem sacrificadas seja precisamente a liberdade, em nome de um regime de imposições e de impedimentos que Jonas classificou como tirania ambiental. Uma vez que quer isso, precisamos de uma política que nos ajude a viver com frugalidade e modéstia. E isso depende de como os políticos de agora vão nos ajudar – de várias maneiras – a fazer a transição de uma vida de excessos para uma vida de modéstia.
Poderíamos dizer que tal vida vocacionada para a coisa pública deve ser capaz de compreender adequadamente essas questões que são próprias da vida pública e assumir um compromisso diante delas. Em resumo, quem assume um cargo público, além do carisma, da capacidade de persuasão, da comunicação adequada e do testemunho afetivo de um compromisso com sua comunidade política, deve também saber elaborar e propor formas de enfrentamento dos desafios sociais e ambientais não apenas para aqueles que lhe são mais próximos ou seus patrocinadores e apoiadores, mas para toda a humanidade.
Se todo ser humano é um animal político, como afirmou Aristóteles, é verdade que nem todos estão vocacionados para uma tal tarefa pública. E também é verdade que essa tarefa não deve ser apenas de quem assume um cargo, mas de todos nós, que atuamos politicamente na sociedade. O que se espera, contudo, é que os políticos nos ajudem a cumprir a nossa própria vocação, nos envolvendo e conclamando constantemente para participar da vida pública.
Por fim, devemos reconhecer que a democracia exige dos eleitos para os cargos públicos, transparência, decência, escrúpulo e responsabilidade, o que passa, também, pelo cumprimento das promessas feitas e a manutenção do diálogo com a sociedade como um todo. A nós, os outros, cabe a tarefa de respeitar a democracia e eliminar o fanatismo e todos os seus horrores, para que possamos juntos vencer os desafios que são nossos como humanidade, confiando em quem elegemos para os cargos públicos – e cobrando deles a responsabilidade que sua vocação merece.
Por Jelson Oliveira é filósofo, professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).