Opinião – Banco Central e o terraplanismo econômico

Alguns poderiam sugerir que a autonomia do Banco Central do Brasil, não seria uma boa ideia porque, afinal de contas, na América Latina não funcionam os princípios básicos da Ciência Econômica.

22/02/2023 17:26

“No jogo político, a independência do BCB incomoda: afinal, o canto da sereia é uma melodia tentadora”

Ataques de Lula ao Banco Central e incerteza sobre política fiscal do novo governo pressionam os juros futuros, que determinam boa parte do custo do crédito. Foto: Lula Marques/Agência Brasil

Em seu Central Banking in Theory and Practice, Alan Blinder, vice chairman do Fed (1994-1996) justifica a necessidade de independência (ou autonomia) da autoridade monetária com dois argumentos: (1) os efeitos da política monetária sobre o produto e a inflação são de longo prazo e, (2) a desinflação tem um custo imediato e benefícios que vêm ao longo do tempo. Além disso, ele afirma que políticos não são necessariamente conhecidos por sua paciência, o que torna a gestão da política monetária muito frágil se sujeita às tentações de curto prazo que, como sereias, encantam os ouvidos até dos políticos menos populistas.

A justificativa de Blinder é baseada em argumentos teóricos bem consolidados, resultando inclusive no prêmio Nobel de Economia (Kydland e Prescott), a noção da Inconsistência Dinâmica de Planos Ótimos. Suponha um governador que esteja em dificuldades orçamentárias no final do ano, com problemas para saldar o décimo terceiro salário dos funcionários, por exemplo. O governador tem uma ideia brilhante e implementa uma política (não esperada) de descontos para o pagamento de IPVA atrasados pelos contribuintes. Alguns realizam o pagamento do IPVA e o governador fica feliz, pois resolve o seu problema e realiza o pagamento do décimo terceiro aos funcionários.

Esta seria, portanto, uma política ótima, pois atingiu seu objetivo. Problema: como os incentivos sempre importam, um sinal importante foi emitido. Não pagar o IPVA fez com que o governo adotasse uma política de desconto, estimulando o comportamento de maus pagadores. Apesar da política ser ótima, a interação do governo com agentes econômicos “espertos” (racionais) sugere que tal política não é consistente no tempo. O mesmo acontece com a gestão de política monetária: tentações de curto prazo podem levar ao descontrole inflacionário.

Alguns poderiam sugerir que a autonomia do Banco Central do Brasil (BCB), que é parte do sistema gestor da política monetária brasileira, não seria uma boa ideia porque, afinal de contas, na América Latina não funcionam os princípios básicos da Ciência Econômica. Tal argumento não é válido. De fato, trata-se de uma das formas de limitar as ações inflacionárias de governantes preocupados apenas com o curto prazo. Caso o leitor ainda tenha dúvidas, vejamos o que nos dizem os indícios encontrados por meio da análise dos dados.

Em setembro do ano passado, Luis I. Jácome e Samuel Pienknagura, do Fundo Monetário Internacional (FMI), publicaram Central Bank Independence and Inflation in Latin America – Through the Lens of History, um texto para discussão daquela instituição. Os autores se perguntam sobre a eficácia de bancos centrais independentes em um período de 100 anos para diversos países da América Latina, inclusive o Brasil.

Na conclusão do trabalho, os autores afirmam que há uma relação negativa e significativa entre a independência do banco central e a inflação, com efeitos tornando-se mais fortes com o passar dos anos a partir da independência. O artigo mostra também que uma melhoria na independência do banco central está associada a um deslocamento para a esquerda na cauda direita da distribuição da inflação e uma diminuição na probabilidade de um episódio de inflação alta.

Esta conclusão não destoa do que pesquisas anteriores encontram para outros países. Assim, por que a insistência de alguns políticos em disseminar, por meio da imprensa, que o melhor seria destruir a recém-nascida independência do BCB? Uma pista para a resposta a esta pergunta está no que disse Blinder: os custos de uma política monetária bem-sucedida no combate à inflação são sentidos muito mais no curto que no longo prazo, o contrário ocorrendo com os benefícios.

Um país com instituições sólidas, neste sentido, é um no qual o BCB tem sua independência blindada contra os humores dos políticos, garantindo à autoridade monetária um caminho menos difícil para que possa proteger o valor da moeda do país (preservando o poder de compra, é bom lembrar, inclusive dos mais pobres) com o mínimo possível de desemprego. Instituições são como regras e, como aprendemos desde criança, um jogo em que ninguém as respeita não leva ninguém a lugar algum. Entretanto, vimos que, no jogo político, a independência do BCB incomoda: afinal, o canto da sereia é uma melodia tentadora.

Deve estar claro para o leitor que nem toda ciência é merecedora de elogios por parte dos políticos. O cálculo de custo-benefício político, como visto, estimula discursos de ódio à autonomia da autoridade monetária. A história da ciência na ex-URSS mostra bem isso. Enquanto se aceitou a pseudobiologia de Lysenko (com danos de longo prazo às pesquisas genéticas russas), a física recebeu um tratamento mais cuidadoso. Pensando no desenvolvimento de mísseis e foguetes, os autocratas soviéticos não tiveram dúvidas.

A moda, no Brasil, parece ser a de que a Ciência Econômica deve ser tratada com desprezo. O consenso de especialistas – sustentado em sólidos trabalhos estatísticos – recebe críticas rasas, mas contundentes. Parte dos políticos, da população e da imprensa, que não são especialistas em imunologia, por exemplo, veem com bons olhos o impacto das vacinas na saúde das pessoas, ao mesmo tempo em que usam um critério distinto para julgar o impacto da política monetária em suas vidas. O mesmo vale para “ideias inovadoras”, como desrespeito a algum esquema de teto de gastos (restrição orçamentária do governo), concessão de benefícios a campeões nacionais (via BNDES), desrespeito às características necessárias para a definição de áreas monetárias ótimas (moeda única, mesmo que uma moeda apenas contábil) e etc.

Seria demais lembrar que as evidências nos mostram que bancos centrais não autônomos são muito mais fracos no combate à inflação e que o aumento do custo de vida dificulta o acesso de qualquer um à saúde, educação, ou seja, meios de subsistência em geral? Será que estamos caminhando para o terraplanismo econômico?

 

 

 

 

Por Claudio D. Shikida é professor de Teoria Econômica do Ibmec BH; Ari Francisco de Araujo Jr. é coordenador do curso de Ciências Econômicas do Ibmec BH.

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