Em campanha e na oposição, apostar na beligerância raivosa pode funcionar (…) No poder e em um contexto no qual se acumulam sinais de uma emergente crise econômica, essa atitude pode ter o efeito contrário. Escreve Luciano Trigo.
28/03/2023 06:04
“Um governo que trata metade da população como inimigos a serem calados tem pouquíssima margem de manobra”
Começa a se disseminar entre analistas políticos o uso da palavra “calcificação” para descrever a situação atual do eleitorado brasileiro. É um patamar acima (ou talvez abaixo) da polarização: em sua grande maioria, a sociedade não está mais “apenas” raivosamente dividida; o apego das pessoas às suas convicções é tamanho, que rigorosamente nada do que aconteça as fará mudar de ideia.
Suas opiniões estão enrijecidas: elas passam a pensar, julgar e agir de forma irrefletida e automática – e a abominar qualquer forma de contestação ou questionamento. É o fim do debate e do contraditório como componentes essenciais da democracia.
É também, de certa forma, a negação da política e até do bom-senso. Ora, deveria ser natural a popularidade de um governo aumentar ou diminuir proporcionalmente à qualidade de sua gestão e aos resultados que ele entrega à população.
Mas, em uma sociedade politicamente calcificada e enrijecida, a gestão e os resultados pouco importam: só interessa reforçar a cada dia, com um fervor religioso, a narrativa do “nós contra eles” que divide e envenena brasileiros já há mais de 20 anos.
O primeiro a adotar de forma sistemática a expressão “calcificação” no Brasil foi o cientista político Felipe Nunes, dono do instituto de pesquisa Quaest. Mas ela é americana na origem: foi cunhada por John Sides, Chris Tausanovitch e Lynn Vareck, os três autores do livro The bitter end: The 2020 presidential campaign and the challenge do American democracy” (“O amargo fim – A campanha eleitoral de 2020 e o desafio à democracia americana”), uma análise da tumultuada campanha eleitoral de 2020 nos Estados Unidos.
Mesmo se tratando de uma análise enviesada, por defender a “democracia de um lado só” (lá como aqui, democracia é só quando o meu grupo está no poder; se outro grupo vencer a eleição, a democracia estará em risco), o livro aponta para um fenômeno que afeta de modo concreto a sociedade americana (e também a brasileira), com consequências amargas para todos os cidadãos: a politização de todos os aspectos da vida cotidiana, que por sua vez reforça a divisão do eleitorado em duas torcidas que se odeiam mutuamente, a ponto de negar a humanidade daqueles que pensam de forma diferente.
No Brasil, esse fenômeno tem relação com o longo movimento de guerra à divergência empreendido pelo partido ora no poder. O problema é que, confinados ao cercadinho ideológico em que vivem, os militantes narrativos deixam de olhar para o Brasil real e acabam se acostumando a falar sozinhos, desaprendendo a ouvir e enxergar sem o filtro da ideologia.
Como acham que só eles têm voz, acham também que só eles podem apontar o dedo acusatório para os outros. Contam para isso, aliás, com o apoio da grande mídia passa-panista e abafadora. Esse monopólio da verdade e da fala fez com que os atuais governistas perdessem o hábito de conviver de forma civilizada e respeitosa com a diferença – princípio rudimentar de qualquer democracia.
A consequência foi o surgimento de um vácuo entre os detentores do monopólio da fala – a “classe falante”, na expressão do sociólogo francês Pierre Bourdieu – e os brasileiros comuns, o grosso da população, cujos valores e costumes tendem a ser muito mais conservadores e tradicionais do que imagina a militância progressista que prega a agenda woke e o fascismo identitário – financiada, vejam só, por megacapitalistas que a esquerda costumjava abominar.
Mas apostar na continuidade e na radicalização desse fenômeno, como aparentemente vem fazendo o governo, é uma estratégia arriscada, por diferentes motivos. A começar pelo fato de que a radicalização sempre tende a beneficiar a oposição – até porque é sempre mais fácil criticar, atacar e destruir do que defender, governar e construir. Mas não é só isso.
Ainda que 90% da população sejam indiferentes à realidade e se aferrem fanaticamente ao seu líder, seja de direita ou de esquerda, ainda restam 10% que apresentam alguma imunidade ao discurso de palanque que transforma a política em uma disputa entre o bem e o mal, em um prolongamento sem fim da campanha eleitoral. Quem dedica sua energia a alimentar esse clima de terceiro turno pode ficar sem tempo para governar e tocar o país.
Ora, para estes 10% – empurrados para o silêncio e a apatia voluntária como estratégia de sobrevivência em um ambiente de censura e intolerância crescentes – gestão e resultados ainda importam. Se a situação piora, sobretudo na economia, eles tendem a migrar rápido para o território adversário, sem dó nem piedade.
Um governo que, em vez de construir pontes e buscar a conciliação do país, trata metade da população como inimigos a serem constrangidos e calados tem pouquíssima margem de manobra. Ao abrir mão, deliberadamente, de tentar atrair o apoio de adversários e mesmo dos indecisos – ou, pelo menos, de buscar um convívio minimamente harmônico e civilizado – ele estabelece para si próprio um teto de apoio perigosamente baixo, já que dispensa o consentimento de metade dos brasileiros – metade que passa a torcer pela sua ruína. Nada de bom pode vir daí.
Em campanha e na oposição, apostar na beligerância raivosa pode funcionar, porque seduz aqueles que acreditam em dias melhores. No poder e em um contexto no qual se acumulam sinais de uma emergente crise econômica, essa atitude pode ter o efeito contrário: deteriorar ainda mais as condições de governabilidade e acelerar a trajetória no caminho de um amargo fim.
Por Luciano Trigo é escritor, jornalista, tradutor e editor de livros. Autor de ‘O viajante imóvel’, sobre Machado de Assis, ‘Engenho e memória’, sobre José Lins do Rego, e meia dúzia de outros livros, entre eles infantis.