Opinião – Novo regime fiscal: alguns dizem que é um arcabouço, realistas apostam em calabouço

Os agentes governamentais parecem convictos que dinheiro nasce em planta e sinalizam uma série de subsídios que não sabemos como poderão bancar. Escreve a economista Tatiana Goes.

14/04/2023 05:52

“Estamos sob a égide de um governo que mistura progresso com gastança de dinheiro público”

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante coletiva de apresentação da nova regra fiscal: proposta determina aumento real do gasto entre 0,6% e 2,5% ao ano.| Foto: José Cruz/Agência Brasil.

Em tempos onde as metáforas futebolísticas são utilizadas pelo governo para anunciar políticas públicas usarei o mesmo mecanismo para resumir o nosso contexto econômico em relação à regra fiscal que está sendo proposta pelo Ministério da Fazenda: por ansiedade de se vislumbrar um resultado, vemos uma confusão entre o que é regra de jogo, estilo de jogo e resultado. Uns preferem jogar retrancados para levar a partida para a disputa de pênaltis, outros gostam de ir com tudo para ganhar de sete a zero. Mas não se pode misturar a escolha de uma política expansionista ou contracionista com o regime, as regras, que devem permitir estilos diferentes para se alcançar um resultado satisfatório.A regra a qual nos referimos é o tão comentado arcabouço fiscal lançado pelo governo federal que, em linhas gerais, pretende zerar o déficit público da União no próximo ano; promover um superávit de 0,5% do PIB em 2025 e um superávit de 1% do PIB em 2026. Mas, ao mesmo tempo, tem como meta preservar gastos considerados prioritários em saúde, educação e segurança; aumentar investimentos públicos e impulsionar o crescimento econômico, bem como controlar a dívida pública e a inflação.

A proposta é bastante complicada e está provocando muitos questionamentos e suscitando inúmeras dúvidas. Em resumo, o que ela faz é preservar o crescimento do gasto público. E isso não é surpresa, pois estamos sob a égide de um governo que mistura progresso com gastança de dinheiro público.

Mas a questão é que um aumento grande da dívida do governo em 2023 vai fazer com que o controle do endividamento se torne muito difícil, com risco de provocar um círculo vicioso: mais dívida, taxas de juros maiores e menos crescimento da economia. E o que podemos chamar de “grande”? Em números, seria um aumento de dívida devido a um crescimento de mais de R$ 80 bilhões ou R$ 90 bilhões na despesa de 2023. O governo vem anunciando desde a transição uma série de projetos que somados vão gerar aumento do gasto federal de mais de R$ 200 bilhões.

Como se já não bastassem as incertezas sobre a condução da política econômica do governo brasileiro, somadas à crise bancária nos Estados Unidos e na Europa, estamos enfrentando saques por parte dos investidores estrangeiros da Bolsa de Valores. Segundo dados da B3, a Bolsa de Valores sediada em São Paulo, as vendas de ações brasileiras pelos estrangeiros superaram as compras em cerca de R$ 2,3 bilhões no mês de março, dando prosseguimento à tendência já observada em fevereiro, quando o saque líquido pelo investidor de fora totalizou R$ 1,68 bilhão.

O movimento recente representa uma reversão da trajetória vista desde meados do ano passado. De junho de 2022 até janeiro de 2023 os estrangeiros registraram aportes líquidos em ações brasileiras, tendo inclusive sido um dos principais responsáveis pela alta de 4,7% do Ibovespa no ano passado. Em suma, enquanto o governo não der sinais claros de querer realmente avançar na agenda fiscal, será difícil “os gringos” ingressarem com força no nosso mercado.

Sempre é bom lembrar que em todas as democracias há uma incompatibilidade entre o que as pessoas esperam receber do Estado e o que estão dispostas a pagar ao Estado. Uma boa política é capaz de arbitrar esse conflito distributivo, criar consenso que distribua essa conta por todos os agentes, bem como distribui-la no tempo adequado. O Brasil não está fazendo nada disso. Os agentes governamentais parecem convictos que dinheiro nasce em planta e sinalizam uma série de subsídios que não sabemos como poderão bancar.

Esse posicionamento pode estar sendo satisfatório para conversar com o eleitorado fiel mas está servindo para afastar o capital estrangeiro e, pior, fechar as portas de linhas de crédito nacionais e internacionais. O roteiro é simples. Qualquer um que entrar num banco disposto a levantar um recurso dali sairá de mãos abanando se não conseguir provar como vai pagar por aquilo.

Vale destacar que o governo assume o compromisso de apresentar resultados primários positivos apenas a partir do terceiro ano de mandato. Algo que soa até utópico visto que já estaremos em escala descendente de poder e final de governo é período que costuma ser marcado por afrouxamento das regras fiscais. E, caso a meta seja de fato cumprida, é bastante possível que o país apresente superávit apenas em um dos quatro anos de mandato do presidente Lula.

A meta para este ano de 2023 já destoa bastante da expectativa do próprio governo para o resultado primário. Em março, o Ministério do Planejamento estimou o resultado de 2023 em R$ 107,6 bilhões, equivalente a 1% do PIB. O limite inferior da meta fixada agora é de 0,75%. Em entrevistas, o ministro da Fazenda Fernando Haddad falou que o governo pretende reduzir esse déficit por meio do aumento das receitas tributárias, mas não deu detalhes acerca de quais tributos o governo pretende aumentar, e para quais setores. É preciso ressaltar que tal medida tem impactos negativos em termos de atividade econômica, comprometendo a geração de emprego e renda. E destacar que o Brasil já tem hoje a maior carga tributária entre todos os países em desenvolvimento. Seria algo como metabolizar o nosso manicômio tributário.

Essa meta fixada está bastante aquém do resultado necessário para a fundamental estabilização do crescimento da dívida pública em relação ao PIB, que pressiona os juros e compromete o investimento e, por consequência, o crescimento econômico. Em seu último Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF), publicado em 15 de março, a Instituição Fiscal Independente do Senado Federal estimou que, no médio prazo, o superávit primário necessário para estabilizar a dívida bruta do governo central (DBGC) é de 1,5% do PIB, resultado com o qual o novo governo não se compromete em nenhum ano sequer dos quatro de mandato. Tal fato transmite bastante preocupação acerca da trajetória da dívida pública, e deve resultar na manutenção e aumento da pressão sobre os juros.

É por isso que o impacto de uma nova estrutura fiscal dependerá da credibilidade das metas fiscais, e se isso melhoraria a confiança do investidor para apoiar os investimentos privados que são essenciais para impulsionar o crescimento no médio prazo. Mas o futuro infelizmente segue nebuloso e preocupante.

 

 

 

 

Por Tatiana Goes, economista, especialista em Gestão Estratégica de Negócios pela Universidade de Harvard, é empreendedora e CEO da GoesInvest.

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