Opinião – Direita pró-fuzil e esquerda anti-polícia são a mesma coisa

Não é à toa que as ONGs passaram a chamar as favelas de “comunidade”, já que assim parece legítimo (…) as comunidades se armarem para se defender. Escreve Bruna Frascolla.

 

19/04/2023 08:03

“Se querer polícia é ser de direita, eu sou de direita. Se não querer cidadãos privados com fuzil é ser de esquerda, eu sou de esquerda”

A deputada federal, Júlia Zanata. Foto: Agência CâmaraNum curto período, a imagem da deputada federal Júlia Zanatta ganhou destaque nas redes sociais duas vezes. Primeiro foi quando a deputada postou uma foto segurando uma carabina enorme, vestida com uma camisa estampada com uma mão de quatro dedos cravada de balas. Isso não é correto. E isto não traz nenhum benefício à nação: traz fama à deputada e excitação à gente vazia viciada em rede social.

A imagem trazia uma frase em inglês que também estava estampada na camisa: “Come and take it” (“Venha buscar”), referindo-se às armas. Com a confusão entre liberalismo e anarcocapitalismo, tem crescido na população brasileira, por meio da direita, a crença delirante na ideia de que dá para viver armado contra o Estado, defendendo-se numa pequena propriedade autossuficiente. Não dá. E isso é uma ideologia importada dos EUA. Não à toa, a imagem traz muita semelhança com uma outra dos EUA. Um indivíduo transgênero gravara um vídeo no TikTok manejando um fuzil e pusera a seguinte legenda: “Mesmo que defender apenas que nós (sic) , pessoas trans, ‘nos armemos,’ não seja nenhum tipo de solução para o genocídio que estamos enfrentando, eu quero mesmo dizer a vocês, transfóbicos, que tentem me pegar.” O discurso é o mesmo: o indivíduo precisa se armar contra a coletividade que supostamente o ameaça. E como a ameaça pode ser mais imaginada do que real, é tênue a linha que separa a autodefesa racional e o terrorismo psiquiátrico.

Na condição de baiana acostumada à lacração racialista, também me chamaram a atenção as florezinhas de Oktoberfest ostentadas pela deputada catarinense. Se na Bahia eu vejo uma política ou uma acadêmica de turbante, eu aposto as minhas fichas em identitarismo negro, pela simples razão de que na Bahia, se você está de turbante sem vender acarajé, tem grandes chances de ser lacradora. As demais possibilidades são: baiana de receptivo (mulher paga para posar de baiana para turistas), filha de santo em dia especial e apreciadora de moda afro (que tem grande intercessão com o conjunto das identitárias). Do mesmo jeito, é muito difícil alguém encontrar em Santa Catarina uma mulher de florzinha na cabeça, salvo em contextos tais como: Oktoberfest, grupo de dança folclórica e profissional ligada ao turismo. Turistas gostam de coisas estereotipadas, por isso na Bahia arranjam as baianas de receptivo (vaga na qual dificilmente uma loura seria admitida); e em Santa Catarina há a demanda por colonas alemãs estereotipadas, servindo, porém, mestiças lusófonas de cabelo pintado de louro como a deputada (aliás, se formos pensar em militantes políticas com florzinha no cabelo e recuarmos no tempo, encontraremos as armamentistas Carla Zambelli e Sara Winter na manifestação do grupo feminista ucraniano Femen. Elas, inclusive, também gostavam de meter frase em inglês sem contexto.)

É justo e são um estado se orgulhar de suas matrizes culturais. No Congresso, isso deve se refletir em políticas culturais, não em parlamentar a caráter. Andar a caráter é coisa de identitário, e identitário é divisivo. Até mesmo a pauta de se armar contra o Estado lembra o movimento negro: nos EUA, é o que os Panteras Negras de fato faziam; no Brasil, o primeiro passo já foi dado com a narrativa de que a polícia (isto é, o Estado) promove o genocídio negro. Seja com o negro de esquerda ou com a branca de direita, promove-se a agenda das ONGs, que é, no fundo, ter de escolher entre um Estado aparelhado por progressistas e Estado nenhum (anarcocapitalismo).

A outra ocasião recente em que a deputada Júlia Zanatta ganhou o noticiário nacional foi a do suposto assédio. Também aí a sua conduta seguiu o modus operandi progressista: a despeito de investir na imagem de mulher forte, apela-se para os sentimentos cavalheirescos dos homens do próprio bando posando de vítima de um homem do bando adversário. A esquerda identitária quer mostrar que os homens de direita são estupradores vis que vão roubar as suas mulheres; a direita lacradora, vice-versa. Fomenta-se a cisão do país, que, dividido, é melhor para ser conquistado.

A situação foi a seguinte: durante um barraco cheio de gritaria na Câmara, a novata Júlia Zanatta batia boca com a veterana Lídice da Mata da Bahia (codinome “Feia” na planilha da Odebrecht). O deputado maranhense Márcio Jerry, governista como Lídice, chegou por trás da oposicionista e berrou no ouvido dela que era para ela respeitar os quarenta anos de mandato da baiana. De maneira ainda inexplicada, a deputada tinha alguém para capturar o momento e providenciou uma imagem estática do deputado Jerry em que ele parecia estar dando uma cafungada à Biden. Daí jogaram as imagens nas redes sociais e chamaram o homem de tarado que não respeita mulheres, quando ele estava justamente mandando respeitar uma mulher mais velha. Ele pode ser chamado de mal-educado (como muitos dos envolvidos), mas não de tarado.

Tomando por base o Twitter (não sei se foi diferente no Instagram) quem começou foi o deputado do Ceará André Fernandes. Ele escreveu (e a deputada endossou) que o maranhense “chegou POR TRÁS da deputada Julia Zanatta (PL/SC) e deu um cheiro no pescoço dela.”

Para a sorte do deputado Jerry, mais alguém tinha a filmagem do barraco (como os deputados agora andam de celular em riste, é compreensível que haja mais filmagens, já que um barraco parlamentar é um ótimo pretexto para filmar, publicar e gerar engajamento nas redes. Assim, é de se pensar se as imagens que a deputada publicou não são excertos de um vídeo). Ele pôde exibir o vídeo em suas redes e deixar clara a situação. E é evidente que ele não cheirou pescoço coisa alguma. Logo, ambos os deputados oposicionistas que divulgaram essa calúnia devem ser punidos.

Mas é claro que nada disso basta para convencer as redes sociais e os comentaristas da Globo News, que prontamente ficaram do lado da deputada a despeito das imagens exibidas na tela. Diz-se que algumas pautas devem ser suprapartidárias, mas a grande mídia determina qual é a esquerda aceitável e qual é a direita aceitável. (Até há pouco a direita aceitável era o Novo, cuja base minguou após as declarações de Amoedo.) A esquerda autorizada diz: “Ui, a polícia é má, tem que tirar”. A direita autorizada diz: “Ai, o cidadão tem que poder comprar fuzil”. Como se houvesse oposição, em vez de complementaridade! Ambas apontam uníssonas para segurança privada! Tira-se a polícia para botar segurança particular. Não é à toa que as ONGs passaram a chamar as favelas de “comunidade”, já que assim parece legítimo – de um ponto de vista anarcocapitalista – as comunidades se armarem para se defender.

Se querer polícia é ser de direita, eu sou de direita. Se não querer cidadãos privados com fuzil é ser de esquerda, eu sou de esquerda.

 

Atualização/errata da autora

Ainda que posasse com a camisa do Femen em manifestações públicas, Carla Zambelli não fez parte oficialmente do grupo ucraniano. Por, isso onde se lia “se formos pensar em militantes políticas com florzinha no cabelo e recuarmos no tempo, encontraremos as armamentistas Carla Zambelli e Sara Winter no grupo feminista ucraniano Femen”, lê-se “se formos pensar em militantes políticas com florzinha no cabelo e recuarmos no tempo, encontraremos as armamentistas Carla Zambelli e Sara Winter na manifestação do grupo feminista ucraniano Femen”.

 

 

 

 

Por Bruna Frascolla é doutora em filosofia pela UFBa e autora de “As ideias e o terror” (República AF, 2020).

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