O que está em jogo na guerra cultural em curso é muito mais do que dinheiro: o que são alguns bilhões de dólares a menos para os metacapitalistas envolvidos nesse experimento social? Questiona Luciano Trigo.
20/04/2023 10:13
“O compromisso com essa agenda parece hoje mais forte que o próprio imperativo do desempenho econômico”
Salvo engano, o conceito de “capitalismo moralista” foi cunhado pelo acadêmico espanhol Miguel Ángel Quintana Paz em um artigo publicado em agosto de 2019, “Nos adentramos en un nuevo tipo de capitalismo: el capitalismo moralista”, no qual ele lançou a tese de que o capitalismo ingressou em uma nova fase, diferente de todas as anteriores. O conceito e a tese fazem cada vez mais sentido para mim.
Que o capitalismo é capaz de se reinventar não é novidade: já o constataram, em diferentes épocas, pensadores tão diferentes quanto Karl Marx e Joseph Schumpeter, o pai da ideia da destruição criativa.
Por exemplo, como demonstraram Luc Boltanski e Eve Chiapello no já clássico ensaio O novo espírito do capitalismo (1999), a partir do início da década de 1970 o princípio de organização hierárquica do trabalho começou a ser substituído por uma organização mais flexível, em rede, aumentando a autonomia relativa do trabalhador (mas à custa de garantias materiais e mesmo psicológicas, com a perda do sentimento de estabilidade e segurança).
Segundo Quintana Paz, essa etapa do capitalismo também já teria sido superada. O traço inédito do capitalismo moralista é que, talvez pela primeira vez na História, empresas, governos e outros agentes econômicos colocam a inovação e o lucro em segundo plano e aderem a uma narrativa fortemente moralista – narrativa que pretende impor um conjunto de ideias, valores e códigos de conduta que impacta todos os aspectos da vida em sociedade. Desnecessário dizer, a moral que tentam impor é a deles, não a da maioria da população.
O compromisso com essa agenda parece hoje mais forte que o próprio imperativo do desempenho econômico. Já são inúmeros os casos de empresas que aderiram ao discurso progressista-identitário e sofreram pesados prejuízos financeiros por causa isso: o episódio mais recente é o da cerveja Budweiser, que na semana passada perdeu 5 bilhões de dólares em valor de mercado após lançar uma campanha de marketing estrelada pelo(a) influenciador(a) trans Dylan Mulvaney.
No capitalismo tradicional, por qualquer critério objetivo a campanha fracassou miseravelmente: além do prejuízo financeiro, a marca recebeu uma enxurrada de críticas e foi objeto de um cancelamento em massa nas redes sociais. Foi mais um caso impressionante de lacração reversa, aquela na qual são os conservadores que cancelam e boicotam empresas e produtos que associam suas marcas a mensagens lacradoras.
Mas o fato é que o movimento de lacração generalizada do capitalismo moralista não dá sinais de arrefecer, ao contrário. Ainda que verdadeiro, o slogan “go woke, go broke” (“quem lacra não lucra”, na versão brasileira) não capta o detalhe essencial de que está em curso um experimento social cujo objetivo não é prioritariamente econômico, não é aumentar lucros, e sim transformar a cabeça das pessoas, mudar a estrutura moral da sociedade, seus alicerces subjetivos.
Tanto isso é verdade que, diante da polêmica e das perdas financeiras provocadas por outro comercial recente, que atacava a “masculinidade tóxica” e exortava os homens a se tornarem domesticados feministos, o executivo da Gilette Gary Coombe afirmou que perder dinheiro era um preço que valia a pena pagar. Porque o que está em jogo na guerra cultural em curso é muito mais do que dinheiro: o que são alguns bilhões de dólares a menos para os metacapitalistas envolvidos nesse experimento?
Mas não é só isso: o capitalismo moralista também interfere na política. Ele não hesita em subverter os próprios fundamento da democracia, cooptando, seduzindo (ou, em casos extremos, corrompendo) aqueles que deveriam ser os principais guardiões das liberdades democráticas: somente isso pode explicar o fenômeno de jornalistas que defendem a censura, de uma justiça que pende sempre para o mesmo lado e de legisladores pouquíssimo preocupados em defender os interesses de quem os elegeu.
São vários os sinais de que isso está acontecendo, mas basta destacar dois: primeiro, a relativização sistemática e reiterada da liberdade de expressão, que vem sendo enxovalhada dia após dia, com apoio da grande mídia e mesmo de tribunais superiores; segundo, a imposição da narrativa da democracia de um lado só, que exclui da política o convívio entre os diferentes e rotula metade da população brasileira como fascista, gente que odeia os pobres e as minorias e que, portanto, merece ser perseguida e esfolada – sempre em defesa da democracia.
Nessa altura, já deve ter ficado claro que os conceitos tradicionais de esquerda e direita, de liberalismo e socialismo já não dão conta das transformações em curso no Brasil e no mundo. Basta seguir o dinheiro para constatar que a esquerda e o progressismo são hoje financiados pelos ricos e poderosos que no passado seriam execrados como inimigos de classe, começando por George Soros e a Open Society Foundation.
Por sua vez, os guerreiros da justiça social de classe média parecem mais preocupados com a gordofobia, a masculinidade tóxica e o uso de pronomes neutros do que em combater a pobreza e a desigualdade.
Está cada vez mais difícil entender o mundo, e estão tentando te enganar todos os dias. O melhor a fazer em épocas assim é desconfiar de tudo: nada se limita a ser o que parece.
Por Luciano Trigo é escritor, jornalista, tradutor e editor de livros. Autor de ‘O viajante imóvel’, sobre Machado de Assis, ‘Engenho e memória’, sobre José Lins do Rego, e meia dúzia de outros livros, entre eles infantis.