O que mudou desde então para ensejar uma investigação? Nada mudou desde então, salvo os ventos políticos e o governo de ocasião. Escreve Deltan Dallagnol.
07/09/2023 08:58
“Como disse o jurista Walter Maierovich, Toffoli extrapolou e se mostrou suspeito de parcialidade ao decidir sobre Lula”
Em 2016, o ex-presidente da República José Sarney resumiu os receios dos políticos com a delação da Odebrecht. Foi gravado dizendo ao delator Sérgio Machado que a “Odebrecht vem com uma metralhadora de ponto 100”. Na mesma época, Romero Jucá, também gravado pelo mesmo colaborador, foi flagrado falando sobre a necessidade de “mudar o governo para poder estancar essa sangria” causada pela Lava Jato. Machado falou então num “grande acordo nacional”. E Jucá completou: “com o Supremo, com tudo”.
Ontem, o ministro Dias Toffoli tornou pública decisão em que anulou o acordo de leniência da Odebrecht e, com ele, provas de corrupção contra 415 políticos de 26 partidos, incluindo quase um terço dos senadores e ministros e quase metade dos governadores da época. Caindo o acordo, cai a razão para a devolução pela empresa de 3 bilhões confessadamente roubados dos brasileiros, que em tese deverão ser restituídos à empresa. Além de blindar políticos, a decisão determina a investigação e responsabilização dos juízes e procuradores da Lava Jato pelo acordo.
A decisão pode ser analisada em três pontos e é melhor lida de trás para frente. De fato, no fim da decisão, Toffoli revela a que veio: fala que a condenação de Lula teria sido um erro Judiciário, que a Lava Jato foi um projeto de poder para conquistar o Estado, que não houve respeito à verdade factual, que provas foram subvertidas, que a operação foi um “pau de arara do século XXI” e que se forjaram provas para levar inocentes e um líder político à prisão. Colocou na conta da Lava Jato até a crise econômica do governo Dilma e tumores e problemas de saúde de investigados e réus.
Essa série de graves e levianas acusações contra a Lava Jato não têm base em fatos e evidências nesse ou outros processos – por não existirem, Toffoli não menciona uma sequer. Lula foi condenado em três instâncias e jamais absolvido, condenações não foram revertidas no mérito, não há qualquer sinal de forja ou subversão de provas nem há um caso sequer em que se tenha demonstrado qualquer tipo de tortura ou confissão forçada. As acusações de que foi projeto de poder, quebrou o país ou gerou tumores é digna de lunáticos da extrema esquerda.
Além disso, as acusações levianas, cuja única “prova” consiste em seus negritos, sublinhados e caixas altas, não têm sequer relação com o objeto do processo, que tratava do acordo da Odebrecht e, nesse contexto, do trâmite da documentação e da cooperação internacional. É um discurso político, uma construção de narrativa para atacar reputações e reescrever a história, dentro de uma decisão judicial. Se espremermos a decisão nesse ponto, não há nenhum fato, prova ou lei, mas apenas tinta, ódio e política.
Como disse o jurista Walter Maierovich, Toffoli extrapolou e se mostrou suspeito de parcialidade ao decidir sobre Lula. Ou, talvez, ao detonar a delação da Odebrecht, criticar o acordo e falar sobre armação contra “inocentes”, Toffoli estivesse reparando a si mesmo. Afinal de contas, apareceu nos documentos da Odebrecht como o “amigo do amigo de meu pai”, isto é, como o amigo de Lula. Delatado por Cabral por vender sentenças, Toffoli votou a favor da anulação da delação. Outra delação que o implicou, da OAS, foi arquivada pelo Supremo sem investigação. O ex-advogado do PT tem muitos motivos, mas nenhuma razão, em dizer o que disse.
Esse é o ponto de partida da compreensão da decisão que anulou o acordo da Odebrecht e suas provas. O segundo ponto relevante da decisão é o mérito do caso, em que os três argumentos de Toffoli são frágeis e amparados em equívocos sobre fatos e provas. Primeiro, Toffoli afirma que o acordo é nulo porque feito por procuradores que atuavam na 13ª Vara de Curitiba que foi julgada incompetente pelo STF. Ora, até um estagiário sabe que incompetência territorial não gera nulidade absoluta de um ato, que pode sempre ser ratificado.
O segundo argumento de mérito de Toffoli é de que houve uma manipulação indevida dos materiais eletrônicos que continham os sistemas eletrônicos de pagamentos de propina da Odebrecht. Ele se baseia nas mensagens hackeadas para dizer que o material chegou a ser transportado em sacolas de mercado. O argumento, contudo, é juvenil. O que determina a integridade de uma prova digital é se ela foi “garantida” por meio de códigos hash que se mantêm íntegros desde sua origem até seu destino, o que foi demonstrado em laudos da Polícia Federal que são públicos e podem ser consultados por meio de uma simples pesquisa no Google. Se o conteúdo está íntegro, pouco importa o meio de seu transporte.
O terceiro argumento é de que a cooperação internacional não teria passado pelos canais oficiais, isto é, por meio do Departamento de Cooperação do Ministério da Justiça. O ministro falta com a verdade aí porque duas cópias do sistema da Odebrecht foram entregues aos procuradores. A cópia apreendida pelas autoridades suíças veio sim por meio do Ministério da Justiça, via pedido de cooperação número 88 de 2016 da força tarefa da Lava Jato. A outra cópia foi entregue diretamente pela empresa, de modo perfeitamente regular.
Outro ponto questionado pelo ministro é a falta de cooperação internacional para o acordo em si, já que tanto Brasil como Estados Unidos e Suíça fizeram acordo com a empresa. O pressuposto de que deveria ter havido cooperação internacional por meio do Ministério da Justiça aí é equivocada. Cada um dos três acordos foi negociado de modo independente e autônomo, ainda que tenha havido coordenação entre as autoridades dos diferentes países. Contudo, não houve um acordo conjunto, tanto é que as autoridades estrangeiras não assinam o acordo brasileiros.
O ministro afirma que tanto há indícios de irregularidade na cooperação que a Corregedoria do Ministério Público Federal instaurou uma sindicância para apurá-las. Contudo, Toffoli escondeu na decisão o fato de que a foi feita a investigação ao longo de mais de um ano, que concluiu, após ouvir autoridades e examinar minuciosamente documentos e provas, que a cooperação internacional no acordo foi plenamente regular. A sindicância foi recebida pelo STF e colocada sob sigilo, aliás. Por que esconder da sociedade?
Um ponto fundamental para entender a cooperação internacional é que pode ser administrativa ou judicial. A administrativa – via Interpol, Grupo de Egmont ou entre Ministérios Públicos de diferentes países – pode acontecer por meio de conversas, telefonemas ou e-mails e não passa pelo Ministério da Justiça, salvo quando objetiva tramitar provas que serão usadas perante a Justiça, o que sempre aconteceu. O ministro fechou os olhos para essa realidade ao exigir cooperação documentada.
O terceiro ponto da decisão é a determinação para que todo mundo – Polícia, AGU, Receita, Ministério Público etc. – investigue os juízes e procuradores da Lava Jato por conta desse acordo. Contudo, o acordo é de 2016 e tudo que foi feito é público e notório desde então. O mesmo procedimento foi seguido em todos os outros. Tudo foi submetido à homologação judicial e à aprovação da Câmara de Combate à Corrupção, instância superior do Ministério Público. Tudo foi supervisionado e fiscalizado pela Corregedoria do Ministério Público e do Conselho Nacional do Ministério Público.
O que mudou desde então para ensejar uma investigação? Nada mudou desde então, salvo os ventos políticos e o governo de ocasião. E qual o fato ilícito ou crime investigado? De qual artigo do Código Penal estão falando? Ninguém o diz porque não existe. Aliás, ainda que a decisão do ministro estivesse correta, discordância de interpretação das normas jamais é crime – não existe o chamado “crime de hermenêutica”. Mesmo assim, Ministério da Justiça e Advocacia da União instauraram investigações e logo virão outras.
Os ministros da Justiça e da Advocacia da União são pretendentes da vaga de ministro do Supremo. Do mesmo modo, o ministro Salomão, que instaurou voluntariosamente uma correição sobre a Lava Jato. Igualmente o ministro Benedito, que cassou meu mandato ilegalmente. E também o ministro Bruno Dantas, que forçou uma multa sobre agentes da Lava Jato de três milhões de reais, num trabalho que um juiz já disse que tem indícios de quebra de impessoalidade, ou seja, de perseguição política. No governo de Lula, que pediu vingança contra a Lava Jato, está aberta a temporada de caça aos agentes da Lava Jato.
Em um ponto, Toffoli tem razão: há uma tortura operando na Lava Jato, só que é uma tortura realizada pelo próprio ministro, que espreme mensagens, fatos, provas, acordos e a lei para serem o que não são e dizerem o que não dizem. Condutas legítimas de investigação de anos atrás, públicas, supervisionadas e fiscalizadas são enquadradas como se fossem criminosas. Na falta de substância, os fatos, as provas e a lei são substituídos, ao fim da decisão de Toffoli, por acusações levianas, de teor político e sem relação com o caso, contra a Lava Jato e seus agentes. No Brasil de Lula, a democracia venceu – mas é a democracia relativa, aquela mesma que Lula diz existir na Venezuela.
Por Deltan Dallagnol é mestre em Direito pela Harvard Law School e foi o deputado federal mais votado do Paraná em 2022. Trabalhou como procurador por 18 anos, atuando em várias operações no combate a crimes como corrupção e lavagem de dinheiro. Foi coordenador da operação Lava Jato em Curitiba