O pessimismo, o desencanto e a desesperança estão presentes nas decisões humanas de não gerar muitos filhos e, para grande parte, não gerar filho nenhum. Escreve José Pio Martins.
20/09/2023 06:37
“Chegando aos tempos modernos, o ser humano começou a ser confrontado em suas crenças e, se é que se pode usar essa expressão, o homem foi humilhado pelo menos três vezes”
Por minha formação técnica em Contabilidade e Economia, desenvolvi o hábito de analisar os atos e fatos pela ótica contábil, financeira e econômica. Assim eu fazia quando me punha a examinar, por exemplo, a recessão ou a hiperinflação que repetidamente ocorreram no Brasil nas últimas sete décadas.
Com o passar do tempo e os estudos que fiz em Filosofia e Ciência Política, percebi que aquele tipo de análise era incompleto, pois os fenômenos naturais e os fatos humanos contêm aspectos econômicos, sociológicos, políticos, culturais, psicológicos e morais; logo, o olhar restrito por uma dada ciência é por definição incompleto.
Atualmente, tenho examinado um tema cujo teor era impensável até há pouco tempo. Trata-se dos rumos que a população mundial está tomando em termos quantitativos. Destaco três afirmações tiradas das últimas estatísticas sobre a população atual e as previsões para as próximas décadas.
A primeira é a previsão que a população brasileira, hoje em 203,1 milhões, pode chegar a 2100 com apenas 150 milhões de habitantes. Em 1970, o número de filhos por mulher era de 4,9; em 2000, estava em 2,38; em 2010, era de 1,9; no fim do ano passado, a média já havia caído para 1,6, e o IBGE diz que, em 2040, o Brasil terá apenas 1,3 filho por mulher. Para a população ficar estável, sem crescer nem diminuir, seria necessária a taxa de 2,1 filhos por mulher.
A segunda previsão é sobre a população da China, hoje de 1,4 bilhão, que pode cair à metade até o ano de 2100. A terceira é a previsão de que os 8,1 bilhões de habitantes do mundo podem cair para apenas 4,5 bilhões em 2100. O que explica essas mudanças tão radicais? Vou aventurar uma interpretação psicossocial.
Em milhões de anos, a humanidade evoluiu em termos biológicos e sociais, passou da condição animal para a divinização do indivíduo, e introduziu a crença na existência de alma e vida após a morte. De milênio em milênio, a evolução continuou, e o homem foi colocado no centro do universo, como razão maior da existência de tudo o que há.
Porém, chegando aos tempos modernos, o ser humano começou a ser confrontado em suas crenças e, se é que se pode usar essa expressão, o homem foi humilhado pelo menos três vezes. Primeiro, vem Copérnico (1473-1543): diz que é a Terra que gira em torno do Sol, retira nosso mundo do centro do universo e afirma que o Sol é o centro em torno do qual os planetas gravitam. Essa foi a primeira humilhação.
Na sequência, Charles Darwin (1809-1882) provoca alvoroço nos meios científicos e comoção entre os povos ao garantir que o ser humano tal como é não foi obra de Deus, mas apenas evolução de um ancestral do macaco. Para o antropólogo espanhol José Maria Bermúdez de Castro, o homem e o chimpanzé vêm do mesmo ancestral, do qual se separaram há coisa de 4 milhões a 7 milhões de anos, sendo que ainda hoje o DNA de ambos é 98% igual. Ao tirar o homem de sua natureza divina e dar-lhe uma natureza de macaco, Darwin humilhou o ser humano pela segunda vez.
Depois, vem o filósofo Artur Schopenhauer (1788-1860) e afirma que nossas crenças e sentimentos não são uma construção de nossa razão e inteligência, mas são impulsos de nossa própria biologia. “Todos somos escravos em nossa própria morada”, disse ele. Sigmund Freud (1856-1939) conclui, após suas pesquisas, que Schopenhauer estava certo, e afirma que a maior parte de nossos pensamentos e sentimentos vem de nosso inconsciente. Não bastasse isso, Friedrich Nietzsche (1844-1900) grita ao mundo que “Deus está morto!”, para se referir à grande parcela da humanidade que não acredita na existência de Deus, e a terceira humilhação está posta.
Essa sequência, ao lado da revolução científica e tecnológica, lança o ser humano num poço de ignorância e pessimismo, fazendo que a própria razão da existência comece a ser posta em xeque. Em termos sociais, surgem os estados mentais de depressão e desesperança, os quais são agravados pela opressão política, redução das liberdades individuais e pelo estado revelado por Noreena Hertz, em seu livro O Século da Solidão.
Ela afirma que a solidão não é apenas a sensação de falta de amor, companhia e intimidade, mas também a sensação de ser ignorado, não visto e não cuidado pela família, amigos e vizinhos; tudo isso acompanhado de nos sentirmos não apoiados e não cuidados por nossos concidadãos, empregadores, nossa comunidade e nosso governo, conclui Noreena.
Juntando tudo isso, ainda sem muita elaboração científica, e somando os problemas de falta de emprego, pobreza e medo da velhice, dá para afirmar que o pessimismo, o desencanto e a desesperança estão presentes nas decisões humanas de não gerar muitos filhos e, para grande parte, não gerar filho nenhum.
Parece-me que, na tentativa de compreender os rumos da população mundial e a possibilidade de sua redução tão expressiva, os elementos que aqui trago não respondem a tudo, mas certamente eles têm sua parcela de contribuição para as causas das previsões publicadas.
Por José Pio Martins é economista e professor de Macroeconomia, Microeconomia, Finanças Empresariais e Filosofia, em cursos de graduação e pós-graduação. Foi secretário do Planejamento de Londrina, diretor-geral da Secretaria da Fazenda do Paraná, vice-presidente do Banco do Estado do Paraná e reitor da Universidade Positivo.