Opinião – Juiz que legisla é problema importado dos EUA, onde empresas mandam na Justiça

Por influência de Wall Street, tem-se normalizado nas empresas um novo modelo de gestão que visa a dar lucro para acionistas. Escreve Bruna Frascolla.

28/09/2023 07:07

“Os EUA são uma democracia de faz-de-contas, pois quem manda no país é uma Suprema Corte não eleita”

Imagem: Bigstock

Estamos familiarizados com as políticas de contrato inconvenientes das Big Techs. Ao criarmos uma conta numa rede social ou num aplicativo como Uber ou AirBNB, a maioria de nós não lê as cláusulas de contrato. E isto por uma razão muito simples: o contrato é imenso e não há abertura para negociar os seus termos. Resta-nos decidir usar ou não a tal plataforma. Depois de termos decidido usá-las, seguiremos importunados por alterações contratuais, pois para continuar usando precisamos indicar que aceitamos os novos termos de contrato.

Para a maioria das pessoas, não há problemas. A maioria dos usuários de Uber e AirBNB é de clientes, não de prestadores de serviço; e a maioria dos usuários de redes sociais é diletante, não faz delas um uso profissional. No entanto, quem pertence à minoria que faz uso profissional dos serviços das Big Techs (um grupo que inclui entidades tão díspares quanto um jornal com canal no Youtube e um desempregado que aluga carro pra rodar de Uber) poderá sentir que o seu ganha-pão está prejudicado pelas plataformas. E aí terá as surpresas mais desagradáveis ao olhar as cláusulas do contrato.

Pois bem, saiu mês passado Tiranny, Inc., de Sohrab Ahmari. A tese do livro é que os EUA padecem de uma cegueira para a tirania exercida pelas empresas privadas, e o embasamento é muito factual. É nesse embasamento que este texto irá focar.

Pessoalmente, o que mais me impressionou foi que a política de contratos à qual estamos acostumados graças às Big Techs é aplicada por grandes empresas usando papel. A prática consiste em, no primeiro dia de trabalho, levar o novo funcionário para assinar a papelada no RH. O processo seletivo foi longo, às vezes o funcionário recém-admitido teve que se mudar para um outro estado do país, com a esposa abandonando o antigo emprego, e no RH ele recebe um contrato do tamanho de Guerra e Paz para assinar. Da boca pra fora, o pessoal do RH garante que é tudo coisinha simples. O novato assina, evidentemente.

Que há no contrato? Sohrab Ahmari pegou o contrato de uma companhia de corretagem de ações para analisar. A política de uso dos smartphones, computadores, sistemas e dados “garante ao seu novo chefe o poder de vigiar minuciosamente o que você faz não só nos computadores e smartphones da empresa, mas também nos seus aparelhos pessoais, que a companhia estimula a usar para acessar sistemas internos. O escopo da política se estende a ‘qualquer indivíduo ao qual seja garantido o acesso a sistemas [da empresa] em sua condição de empregado’. Note-se com cuidado: O fator determinante para aplicar a política não é a propriedade do aparelho, mas o acesso ao sistema” (p. 38-39).

De fato, um dos casos com o qual Sohrab Ahmari abre o livro é o de Lisa Rene, uma funcionária da varejista G. F. Fishers que ainda em 2009, após criticar os superiores em privado, descobriu que tudo o que ela digitava estava sendo “grampeado” por um malware da empresa, que fizera o mesmo com todos os seus funcionários sem o seu conhecimento. Se ela tivesse assinado um contrato como esse acima, atual, não teria direito de reclamar.

Voltemos à análise do contrato: “o documento exige que você consinta com a ‘fotografia e gravação de sua imagem e voz […] em conexão com o trabalho’ […]. A companhia, e a entidade à qual ela venda ou licencie esse material gravado, pode usar ou reusar a sua ‘voz, inclusive, sem limitações, sua fala e sua voz cantando e qualquer criação musical sua’. Assinando isso, você abre mão da propriedade de suas ‘ações, nome, aparência e material biográfico (i.e., coletivamente, ‘Imagem’ [Likeness em inglês]) em qualquer mídia ora conhecida ou futuramente criada, em todo o mundo, pela eternidade’ – para sempre – para o seu empregador e qualquer entidade à qual ele possa vender, licenciar ou alugar a sua presença digital. Você também concorda com não processar a companhia ou quaisquer desses terceiros por nenhum motivo.

“Você pode se perguntar por que o seu empregador quer a sua imagem, incluindo a sua voz cantando. Num mundo mais velho e inocente, o uso da sua imagem poderia ter se limitado a vídeos de treinamento ou brochuras de recrutamento. Mas o contrato que você assinou deixa claro que sua imagem pode ser usada para ‘propósitos comerciais’. Hoje existe um grande mercado para dados de voz e imagem humanas. Seu empregador pode lhe gravar, por exemplo, enquanto você estiver fazendo telefonemas de vendas, e depois vender ou licenciá-la para a Apple, de modo que ela possa aprimorar o serviço Siri” (p. 39-40).

Em seguida, Ahmari aventa a possibilidade de sua imagem ser vendida múltiplas vezes e ir parar em pornografia. Nessa circunstância, você sequer poderia processar algum envolvido, já que no contrato consta que você não vai processar ninguém que compre o material, por toda a eternidade. E mais: se você tiver assinado um tratado decente ao ser contratado, o patrão pode resolver que os contratos de trabalho vão se atualizando, do mesmo jeito que os aplicativos.

Comunicadores reclamam muito quando as Big Techs alteram o seu ganha-pão de modo arbitrário e imprevisível. Os motoristas de aplicativo também têm suas queixas, mas não têm voz. No livro de Ahmari, aparece o motorista canadense David Heller, que teve dificuldades para processar a empresa Uber. Logo depois de ele financiar um carro contando com a sua renda média, a Uber pôs uma atualização de contrato que muitos tiveram que aceitar sem nem ler, porque estavam no meio de uma entrega e o GPS parava de funcionar enquanto não aceitassem. Com a atualização, a renda de David despencaria de repente, sem nenhum aviso prévio. Ao querer processar a Uber, porém, descobriu que, no primeiro contrato que aceitara ao começar a trabalhar, uma cláusula dizia que a Uber só poderia responder a processos numa corte privada em Amsterdã, na Holanda. Obviamente, Heller não tinha como custear nem uma passagem para a Holanda, já que ele estava enrolado com o carro recém financiado. Graças a advocacia pro bono, o caso dele foi parar na Suprema Corte do Canadá, concluiu que a Uber não poderia incluir tal cláusula. O caso Uber v. Heller criou precedente jurídico.

Algo parecido ocorreu nos EUA, mas com desfecho diferente. Na temporada de entrega de declarações de imposto de renda, uma grande empresa de contabilidade fez seus funcionários trabalharem muito além dos seus turnos sem pagar por isso. Ao querer processar a empresa junto com os colegas (o que ajuda a reduzir os custos), descobriu que, pelo contrato, a empresa só poderia ser processada numa corte privada e não admitia ações coletivas. Os custos de processo eram muito altos e inviabilizavam, na prática, qualquer contestação jurídica. O caso foi parar na Suprema Corte – que decidiu que os trabalhadores eram livres para se recusar a assinar o contrato. A jurisprudência se juntou com outro processo e ficou conhecida como Epic System v. Lewis, em 2018.

Por mais que reclamemos do judiciário brasileiro, essa anarquia nos é estranha, e um empregador não tem a liberdade de botar o que quiser num contrato válido para o trabalhador assinar. Tyranny, Inc confirma uma impressão que há algum tempo eu divido com o leitor desta coluna, a saber: que os EUA são uma democracia de faz-de-contas, pois quem manda no país é uma Suprema Corte não eleita. Roe v. Wade é só uma decisão famosa em meio a tantas outras decisões importantes para a organização econômica e social do país. Juiz que legisla é problema importado dos EUA.

No que concerne ao mundo do trabalho, podemos simplificar assim: o capitalismo de laissez faire nos EUA foi fundamentado não em decisões do congresso nem do presidente, mas sim em decisões da Suprema Corte, que consideravam inconstitucionais quaisquer regulações públicas do trabalho. Essa fase é conhecida como “Era Lochner”, que toma seu nome na decisão Lochner v. New York (1905), que deixava Lochner, o dono de uma padaria, descumprir uma lei estadual que limitava a dez horas o tempo de trabalho diário. Embora a decisão Lochner, mais famosa, seja de 1905, costuma-se datar a o início da era em 1897, com a decisão Allgeyer v. Louisiana.

Durante a Era Lochner ocorreram a quebra da bolsa de valores e a Grande Depressão. Esta acabou durante o New Deal, de Franklin Delano Roosevelt, único presidente da história dos EUA com três mandatos e que saiu morto do cargo. Em 1937 ele aumentou a quantidade de ministros na Suprema Corte, e estes puseram um fim à Era Lochner.

O legado trabalhista do New Deal durou as décadas 40, 50, 60 e 70, mas começou a ser desconstruído na década de 80, quando a dobradinha Reagan/Thatcher abraçou o fundamentalismo de mercado e passou a empurrá-lo para os demais países ocidentais. E enquanto os trabalhadores do primeiro mundo iam perdendo direitos, iam perdendo os empregos para escravos chineses mesmo assim, já que eram mais baratos de qualquer jeito. Por outro lado, o Brasil das décadas de 60 e 70 decolava sem desfazer o legado trabalhista de Vargas.

Segundo Ahmari, a desordem na vida econômica dos EUA não é fruto do capricho dos juízes da Suprema Corte. Sua jurisprudência atende a interesses empresariais poderosíssimos, e coincide com a financeirização da economia dos EUA. Essa financeirização, a seu turno, destrói empresas da economia real, e até serviços públicos.

É assim: por influência de Wall Street, tem-se normalizado nas empresas um novo modelo de gestão que visa a dar lucro para acionistas (uma demanda imediatista), dificultando o reinvestimento (que tem em vista o médio e longo prazo). Para dar esse lucro, as empresas têm que ter liquidez garantida e devem cortar ao máximo as despesas. Assim ela vai se sucateando, porque sua finalidade imediatista é incompatível com o aprimoramento do serviço ou produto oferecido à clientela. Ao cabo, a empresa quebra e deixa um monte de executivos ricos pedirem falência – e aí tem-se um judiciário disposto a aceitar todo tipo de manobra que preserve o patrimônio dos donos. (Os caso mais bizarros citados no livro são as manobras judiciais da J&J, que causou câncer com talco infantil, e da Purdue Pharma, que praticamente criou a epidemia de opioides nos EUA.)

Wall Street também administra os fundos de pensões. Estes oferecem alternativas privadas a serviços essenciais, como ambulância e bombeiros. Um exemplo citado por Ahmari é o do casal cujo trailler residencial pegou fogo misteriosamente, foi atendido por dois corpos de bombeiros – um público e outro privado, que chegou atrasado – e se surpreendeu com uma conta de 15 mil dólares. A empresa privada era fuleira e estava entrando em falência, administrada segundo a prática de Wall Street. E os acionistas pagos por ela incluíam nada menos que os fundos de pensões dos bombeiros públicos que viam o seu emprego ser privatizado e precarizado. Segundo Ahmari, o Obamacare atendeu muito bem a esse tipo de prestador privado de serviços de emergência. Os pobres têm pavor de discar 911 porque não sabem que tipo de serviço virá atender e temem uma surpresa como a conta recebida pelo casal cuja casa móvel pegara fogo.

O mesmo tipo de problema aflige áreas pobres com problemas no abastecimento de água, por exemplo: a empresa de abastecimento passa a pagar acionista, não investe em manutenção e para de funcionar (depois pede falência etc.). Esse estado de coisas é pouco conhecido nas áreas mais ricas dos EUA e no mundo por causa dos “desertos de notícias”. O problema é o mesmo: os jornais locais que sentiram a chegada da internet ficaram sem dinheiro, foram comprados por algum gigante, viram seus quadros reduzidos, passaram a reproduzir notícias nacionais, não há jornalistas para tratar de questões locais e a função do jornal passa a ser subsistir para dar lucro a acionista.

E assim fica completo o ciclo de desinformação e destruição da economia dos EUA. No próximo texto, tratamos da parte teórica do livro, já que aqui vimos um resumo das questões factuais.

 

 

 

 

 

Por Bruna Frascolla é doutora em filosofia pela UFBa e autora de “As ideias e o terror” (República AF, 2020).

Tags: