Partir do momento em que o STF se diz órgão político (…) é porque as leis que nos davam a necessária ilusão de justiça não servem para nada. Escreve Paulo Polzonoff Jr..
06/12/2023 06:58
“Essa é a Doutrina Alexandrina: onde o que impera é o arbítrio puro e simples e nada misericordioso”
Na segunda (4), o ministro Alexandre de Moraes aprontou mais uma. Desta vez, e pela segunda vez, ele bloqueou as contas bancárias de uma menor de 15 anos cujo crime é ser filha de Oswaldo Eustáquio – um pobre-diabo que Alexandre de Moraes considera uma ameaça, não!, A MAIOR AMEAÇA ao seu fantasioso Estado Democrático – e “de Direito”, ainda por cima. Justificando a medida, o ministro disse que afastava “excepcionalmente, garantias individuais” para que não fossem usadas “como verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”.
Deixando de lado o estilo risível de Alexandre de Moraes (“escudo protetivo”. hahahahaha), vale a pena nos determos no advérbio de modo. No “excepcionalmente” que, ao que parece, virou moda, ou melhor, virou norma entre os ministros do Supremo Tribunal Federal. Cada qual convencidíssimo de que lhe cabe salvar a abstração da vez (a democracia, as instituições, o EDD, o voto eletrônico, o Brasil) a qualquer custo.
Carmén Lúcia já tinha feito isso. Lembra? Durante as limpíssimas eleições de 2022, sobre as quais não pairam qualquer alguma, Cármen Lúcia votou pela censura prévia a um documentário da Brasil Paralelo sobre a facada sofrida pelo então presidente Jair Bolsonaro. Que, coincidentemente, e apenas coincidentemente, que coisa!, era o candidato malquerido (ou seria despreferido?) dos ministros do STF. Na ocasião, a ministra também enfatizou o caráter excepcional, excepcionalíssimo, da medida. Você acreditou? Nem eu.
“Mesmo passando por cima da Constituição?”, me pergunta alguém que passou os últimos anos em coma. Mesmo. “Mas e as Cláusulas Pétreas?”, me pergunta algum zumbi positivista, daqueles que acreditaram mesmo que meia dúzia de palavras num livrinho assinado pelo Dr. Ulysses seriam capazes de deter tipos arrogantes e revolucionários como Barroso et caterva. Mesmo. Para tanto, basta usar o “excepcionalmente”. A gente confia. Ou melhor, somos obrigados a confiar.
Excelência
O problema é que o “senso de exceção” já está no ar. Tanto de um lado quanto do outro. Ninguém mais é igual perante a lei. Nem se espera mais que sejamos. Há os seres superiores, os membros da tecnocracia jurídica que dizem e fazem o que bem entendem, de acordo com princípios pessoais e voláteis – e o resto. Os inferiores. Nós.
Pegue, por exemplo, o caso da juíza Kismara Brustolin, flagrada aos berros só porque uma testemunha se recusou a chamá-la de “excelência”. Só porque uma testemunha, um homem comum, se negou a se ajoelhar diante da juristocracia. Só porque uma testemunha se opôs à ordem de reconhecer na magistrada a excelência que ela, de fato, não demonstra.
Ao tratar o homem comum feito um escravo que deve reverência à mestre, Kismara quis deixar claro que neste país há dois tipos de pessoas: as que mandam, porque são dotadas de um poder sobrenatural de estarem sempre com a razão, e as que obedecem. E me chame de excelência, p&%$@!!!!! É a Doutrina Alexandrina, que por costume e medo ainda há de prevalecer sobre a tal de… como é o nome daquilo mesmo? Destruição? Revolução? Traição? Ah, sim! Constituição.
Feijoada
O “senso de exceção”, que no fundo não passa de um senso de injustiça, já contamina também as relações entre as pessoas. Ou entre as pessoas e as instituições. No meu entorno, é difícil encontrar quem acredite que um juiz, qualquer juiz em qualquer corte (até no campo de futebol!), será capaz de aplicar a Justiça-com-jota-maiúsculo. Aquela justiça que é cega, mas não burra, muito menos perversa.
Um amigo que bateu o carro, por exemplo, já está dando a causa como perdida. Simplesmente porque, nas redes sociais, a outra parte se expõe como esquerdista/progressista, enquanto meu amigo ainda usa o 22 no avatar. Para piorar, o amigo fez uma pesquisa com o nome do juiz e não precisou de muito tempo para descobrir que se tratava de um ativista.
Outro amigo, que briga na justiça com um ex-inquilino que entregou o apartamento alugado em petição de miséria, também prevê uma sentença desfavorável. Apesar do contrato. Apesar da vistoria. Apesar de toda e qualquer prova que ele tenha a seu favor. Simplesmente porque “pegar o juiz num bom dia” se tornou mais importante do que argumentar e apresentar os fatos.
Teoricamente, a “religião ideológica” professada pelas partes não deveria ser determinante na resolução de uma simples querela imobiliária ou de trânsito. Mas é a tal coisa: partir do momento em que o STF se diz órgão político e os juízes da mais alta corte do país decidem tudo na base do “excepcionalmente” é porque as leis que nos davam a necessária ilusão de justiça não servem para nada.
Essa é a Doutrina Alexandrina: onde o que impera é o arbítrio puro e simples e nada misericordioso, muito menos justo, só nos resta rezar para que o juiz não tenha perdido a sua humanidade. Para que ele tenha conseguido dormir bem na noite passada. Para que a audiência não seja marcada depois do almoço. E, se for esse o caso, para que a feijoada lhe tenha caído bem.
Por Paulo Polzonoff Jr. é jornalista, tradutor e escritor