Opinião – “Quanto sorriso, ó, quanta alegria”

A sabatina conjunta de Dino e Gonet transformava a plateia em todo o Brasil em bobos da corte. Já faz tempo que os protagonistas foram rebaixados a figurantes, sem direito a fala. Escreve Luís Ernesto Lacombe.

15/12/2023 06:34

“Flávio Dino virou um santo, citou a Bíblia, falou de Deus, de Jesus Cristo, redimiu-se de seus pecados, mesmo sem reconhecê-los e confessá-los”

O ministro da Justiça, Flávio Dino, e o senador Sergio Moro (União-PR). Foto: Pedro França/Agência Senado

“Quanto riso, ó, quanta alegria”… Às 9 da manhã, quando liguei a televisão, na quarta-feira, 13 de dezembro de 2023, foi essa marchinha de carnaval que me veio imediatamente à cabeça… Mais de mil palhaços corriam pelos salões do Senado. Suas risadas e gargalhadas eram compassadas, cúmplices. Repórteres e comentaristas de tevê misturados aos senadores governistas, numa festa antecipada, num congraçamento informal, cheio de brincadeiras elogiosas, piadinhas respeitosas, gracinhas mutuamente engrandecedoras e gracejos que os erguiam, todos eles, de parte a parte.

Na dolorida plateia também havia palhaços, milhões de palhaços que viram três jornalistas, antes da sabatina de Flávio Dino e Paulo Gonet, fingindo entrevistar três senadores. Todos tão felizinhos… “Quanto riso, ó, quanta alegria”… Por unanimidade, naquela conversa tão animada, o grupo aprovou a indicação de Dino. O senador Omar Aziz comemorava: “O STF terá um ministro com experiência nos Três Poderes”. Isso é ótimo, todos concordaram… Eles concordam em tudo. Se o Supremo entrou para a política, por que não politizá-lo ainda mais? A conversa terminou com palpites sobre a votação no plenário do Senado. O bolão decretou a vitória de Flávio Dino. “Boa sabatina para vocês”, os jornalistas se despediram dos senadores. Todos sorriram, como sorriram…

Troquei de canal. Em outro canto dos salões do Senado, uma repórter estava ao lado do ministro da Educação, Camilo Santana, tornado senador por um dia. “Quanto riso, ó, quanta alegria”… Ela fez piada sobre a diferença de altura entre os dois: “Não tive tempo nem de pegar o meu banquinho para entrevistar o ministro, que é muito alto”. Do estúdio, a apresentadora disse que estava tudo ótimo… Todos riram, a apresentadora, a repórter e o ministro feito senador. Troquei de canal, de novo… Tudo igual, uma felicidade só. A jornalista no comando lembrava que Alexandre de Moraes estava fazendo aniversário e prestou uma homenagem ao ministro do STF.

Tudo parecia uma piada, desde as indicações feitas por Lula, aquele que na campanha eleitoral disse que “tentar mexer na suprema corte para colocar amigo é um atraso, um retrocesso”. E o show era de quinta categoria, uma comédia previsível, uma comédia de bordões, sem surpresas, infelizmente. Quando Davi Alcolumbre abriu as cortinas, ele queria que o humor ácido não causasse desconforto. A sabatina conjunta de Dino e Gonet transformava a plateia em todo o Brasil em bobos da corte. Já faz tempo que os protagonistas foram rebaixados a figurantes, sem direito a fala. A jornalista adoradora do Alexandre de Moraes achava graça no pastelão: “A oposição já está esperneando”. “Quanto riso, ó, quanta alegria”…

Teve também comédia romântica, água com açúcar, nos abraços afetuosos do senador Sergio Moro e do senador Hamilton Mourão em Flávio Dino, nos risos incontidos dos três, na reverência da senadora Mara Gabrilli ao indicado ao STF. Teve besteirol, piada nonsense… Randolfe Rodrigues lembrou que 13 de dezembro também foi o dia da decretação do AI-5 e disse o seguinte: “Espero que hoje se faça a remissão dos pecados pelo Ato Institucional número 5, que usurpou a democracia brasileira”. Com Dino no STF? Nada fazia mesmo sentido no espetáculo podre do absurdo, do contrassenso, da supressão completa da lógica.

Mais uma jornalista se abriu em gargalhadas, quando Davi Alcolumbre foi cobrado pela oposição por ter demorado mais de quatro meses para marcar a sabatina de André Mendonça, indicado ao Supremo em 2021, e ter se apressado em agendar a arguição de Flávio Dino. O presidente da Comissão de Constituição e Justiça encarnou o personagem Odorico Paraguaçu, soltou um “pratrasmente” e disse que “a oposição o fez melhorar”. Os governistas riram. “Quanto riso, ó, quanta alegria”… Tudo estava nesse clima, tudo era engraçadíssimo.

Paulo Gonet, é verdade, não se presta ao papel de humorista. Estava sobre ovos, ensaboado, escorregadio. Suas “piadas sem graça” aceitavam passivamente a redução da Procuradoria-Geral da República a quase nada. A sanha acusatória do STF será liberada de vez. As prerrogativas da PGR ficaram no “pratrasmente”, seguirá dispensada sua participação, supervisão e anuência na abertura de inquéritos, em ações de busca e apreensão, em diligências… Mas o senador Petecão – no apelido, ao menos, um personagem de comédia – elogiou Gonet: “Seu currículo é ótimo! E meu filho é amigo do seu filho”.

Quando perguntaram sobre a liberdade de expressão, Gonet saiu-se com essa: “A liberdade de expressão não é plena, pode e deve ser modulada de acordo com as circunstâncias”. Não foi sátira, não foi engraçado, e uma pessoa séria pularia as risadas, as gargalhadas e iria direto ao choro. Mais ainda porque, na sabatina conjunta transformada em comédia bufa, o outro personagem, Flávio Dino, também pensa assim. Mesmo em sua farsa, ele reafirmou equívocos, erros e tramoias. O senador Petecão aplaudiu e fez elogios: “Tive o prazer de ser deputado federal com o senhor, ministro. O senhor sempre aceitou vir ao Senado… Sou muito grato. O senhor não respeitou convocações da Câmara, mas aqui no Senado”…

Flávio Dino acha que “o Poder Judiciário não é uma ameaça à democracia”; ele repetiu essa piada algumas vezes, uma piada sem graça, ruim demais… Então, não há ativismo judicial, não há ilegalidades, arbitrariedades, abusos, censura, perseguição, nada disso. E essa pessoa vai defender a Constituição? Rir é impossível… Mas Dino é dado a chistes e afirmou que “a independência entre os poderes deve ser preservada”, mas ele se preocupa “sobretudo com a harmonia”… Talvez ache que, se todos pensarem como os ministros iluminados, haverá “harmonia”.

Flávio Dino contou, de novo, suas historinhas sobre o sistema eletrônico de votação, fake news, 8 de janeiro, a visita a uma favela carioca, a ameaça que fez às plataformas digitais, Polícia Federal, descalabro no Maranhão… Falou de recentes apreensões de armas, todas de origem ilegal, e ninguém se lembrou das mentiras que ele contou sobre a política armamentista, os CACs… A oposição pode também ser uma grande piada.

Dino jurou que não é inimigo pessoal de ninguém, que não concorda com xingamentos, agressões, tratamentos discriminatórios. Ele não concorda, falou seriamente, mas, por dentro, dava risadas. Um fingimento mal enjambrado de alguém que chamou Jair Bolsonaro de serial killer e genocida e disse que os bolsonaristas são piores que os traficantes e assaltantes de banco que ele julgou como juiz federal… Na comédia da sabatina, foi assim: Flávio Dino virou um santo, citou a Bíblia, falou de Deus, de Jesus Cristo, redimiu-se de seus pecados, mesmo sem reconhecê-los e confessá-los. Dino, pelo jeito, tem sua própria igreja.

O jornalista de um portal de notícias acreditou em tudo, escreveu que “Dino derreteu a acusação de que pode agir politicamente no Supremo”. Outro falou em “compromisso ético” do indicado ao STF. E, num dos maiores jornais do país, um articulista destacou que Dino “não abrirá mão de suas convicções, mas seguirá a Constituição”. Parecia até um concurso para escolher a piada mais sem graça. Dino deve estar curado. Como ministro do Supremo, vai fazer tudo direitinho, ou seja, tudo ao contrário do que fez até hoje.

A velha imprensa o adora, é bajulação pura. Acredita cegamente nas promessas de respeito às leis, isenção e equilíbrio, mesmo que tudo isso esbarre nas desastrosas analogias que Dino fez com o futebol. O indicado ao STF lembrou jogadores que mudaram de posição ao longo da carreira, ou que trocaram de time, enfrentando sempre de forma séria seu clube anterior. O senador Carlos Portinho apontou a contradição: “O senhor não está mudando de posição no mesmo time, não está mudando de time, está se candidatando ao cargo de juiz”. Foi bem o senador, até lembrar que votou pela aprovação de Cristiano Zanin, outro indicado por Lula ao Supremo. Nosso parlamento é mesmo uma comédia.

Os atos finais foram bem mais rápidos do que a sabatina com cara de “stand up comedy”. Odorico Paraguaçu, digo, Davi Alcolumbre, rapidamente anunciou o resultado da votação na CCJ e levou a decisão sobre os indicados imediatamente ao plenário do Senado. Nessa comédia sem graça brasileira, as votações secretas são mais uma grande chacota… Gonet e Dino foram aprovados. O Senado aceitou virar um “pigmeu”. “Quanto riso, ó, quanta alegria”… E, depois de 12 horas diante da televisão, não tenho mais dúvida: o Brasil é uma grande piada.

 

 

 

 

Por Luís Ernesto Lacombe é jornalista e escritor. Por três anos, ficou perdido em faculdades como Estatística, Informática e Psicologia, e em cursos de extensão em administração e marketing. Não estava feliz. Resolveu dar uma guinada na vida e estudar jornalismo. Trabalha desde 1988 em TV, onde cobriu de guerras e eleições a desfiles de escola de samba e competições esportivas. Passou pela Band, Manchete, Globo, Globo News, Sport TV e atualmente está na Rede TV.

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