O nosso caldo cultural está muito ruim, e o “marxismo cultural” não é o maior dos nossos problemas. Nosso maior problema é o anarcocapitalismo. Escreve Bruna Frascolla.
24/01/2024 07:26
“Pesquisas que combinam termos como ‘acompanhante’, ‘pornografia’ e ‘estupro’ com a palavra ‘ucraniana’ (…) subiram de um jeito alarmante, segundo a OCSE”
Digamos que um homem convide uma mulher para saírem sozinhos à noite, a dois. Ele tem segundas intenções consigo, e ela tem grandes chances de já ter notado isso. Entre um copo e outro (pois o álcool, na medida certa, é um elemento pró-social), e depois de uns beijos, ele a convida para a própria casa. Ela aceita e, lá chegando, os dois fazem sexo. Nenhum dos dois bebeu demais; ele pôde desempenhar o que queria e ela estava muito desperta. Creio que nenhuma pessoa sensata diria tratar-se de estupro, nem de algo não consentido, nem de algo que não foi fruto de livre escolha.
Infelizmente, porém, o bom-senso não é uma coisa tão bem partilhada quanto Descartes imaginava, e as feministas inventaram o tal do affirmative consent, ou consentimento afirmativo, que consistiria em exigir que a mulher dissesse algo como: “SIM, eu consinto em copular com o senhor”. Na mesma toada, os masculinistas, red pill, anarcocapitalistas etc., agora já falam em contratos como uma maneira de lidar com os crescentes abusos judiciais feministas. No fundo, os dois grupos pregam a mesmíssima coisa, já que a única maneira imparcial de saber que houve o tal do “consentimento afirmativo” é por meio de um documento, um contrato.
Voltemos a fita. A mulher está sozinha com o homem na casa dele aos beijos. Ele, então, saca um contrato cheio de letras miúdas: a descontração acaba, ela vai-se embora. Esse seria o desenrolar normal do acontecimento. Mas rebobinemos ainda mais a fita: ambos estão juntos num local público e ainda não trocaram beijos. Ora, se você do nada beijar a boca de uma mulher desconhecida na rua, é caso de polícia – mesmo antes de as leis feministas deturparem o conceito de estupro. Se no tempo da minha avó um homem desconhecido fizesse isso, apanhava na rua e a polícia só ia aparecer depois de “resolvida” a questão. Hoje também, a depender do grau de policiamento da localidade. Seria o caso, então, de criar um contrato permitindo beijos antes de o homem esboçar qualquer investida?
No tempo da vovó, não havia revolução sexual nem pílula. As vovós normalmente não faziam sexo antes do casamento, mas sem dúvida davam mais liberdades ao namorado ou noivo do que a desconhecidos. Não era qualquer um que podia pegar na mão, nem era qualquer um que poderia dar beijo. No entanto, obviamente essas permissões não estavam sujeitas a contrato: nesse tipo de interação humana, o consentimento é tácito e negociado constantemente, desde que o mundo é mundo.
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Imaginemos agora uma situação bem diferente: Anastácia é uma bela ucraniana de 17 anos que não tem muita coisa além do próprio corpo, o qual ela e suas parentas estão tendo dificuldades para alimentar em meio à guerra. Suas parentas mais velhas estavam acostumadas a ganhar dinheiro com o próprio corpo por meio do aluguel de barriga: casais ocidentais que não podiam ou não estavam a fim de conceber pagavam-lhes por isso porque o país tem um aparato legal favorável à prática. Com a guerra, porém, o negócio esfriou.
Ao atingir os 18 anos, Anastácia fica aliviada, porque agora ela pode consentir e, assim, ganhar dinheiro. Fazendo uso de sua liberdade, ela se inscreve num site de venda de noivas ucranianas para arrumar um marido. Moça direita, ela não quer virar prostituta; quer casar. Lá na Inglaterra, Joe, um esquisitão que tem dificuldade em lidar com mulheres, consulta um catálogo de noivas ucranianas online e resolve comprar a jovem Anastácia.
Mal sabia ela que, ao se inscrever no site, ela se comprometia a satisfazer todos os caprichos sexuais do seu marido/cliente. Por precaução (do site), ela assina também documentos físicos especificando tudo o que ela aceitava fazer com o marido. Como ela está aliviada por sair da Ucrânia e animada com a perspectiva de enviar dinheiro para os familiares, ela nem se dá ao trabalho de olhar no dicionário o que significa “coprofagia” – deve ser algum tipo de massagem.
Chegando à Inglaterra, ela encontra um esquisitão repulsivo com nula habilidade com mulheres, e que não tem o menor interesse em agradá-la, porque ele pagou e ela assinou o contrato. Se Anastácia quiser sair dessa, porém, teria de cobrir o prejuízo do ex-futuro-marido e da agência, segundo o previsto no contrato. Não teve opção senão ficar.
Na Inglaterra, as autoridades estão acostumadas a fazer vista grossa para os casamentos forçados de cidadãs inglesas com seus primos paquistaneses, por que se preocupariam com uma imigrante recém-chegada que assinou um contrato sem ler direito? Ora, o respeito aos contratos e a liberdade de vender qualquer coisa (inclusive a si próprio) caracterizam a “civilização judaico-cristã ocidental”. Logo, só um comunista, um estatista, um marxista cultural quereria que abstrações como a “dignidade humana” estivessem acima da verdadeira Liberdade, que consiste em assinar contratos.
Mas, para não dizer que Anastácia teve muito azar, seu marido lhe forneceu de graça lubrificantes e entorpecentes, de modo que ela não precisaria estar acordada enquanto ele usasse tudo (ou quase tudo) o que estava previsto no contrato. Não que ele estivesse preocupado com ela; era para não despertar a atenção dos vizinhos.
Pessoas sensatas dirão que toda essa situação é criminosa, pois inclui escravidão por dívidas e estupro. Mas os anarcocapitalistas e seus incontáveis simpatizantes não estão no conjunto de pessoas sensatas.
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Quais são as chances de uma história como a de Anastácia acontecer? Não sei. Sei que as agências de venda de noivas já existem; sei que o business cresceu na guerra; sei que a imigração para a Europa é mais fácil do que nos Estados Unidos. Segundo lemos em matéria do jornal britânico Huffington Post, “encomenda de noivas” é “uma indústria crescente”, e “a invasão da Ucrânia capturou a atenções de milhões – e homens solteiros com esperanças de comprar amor não são exceção. O interesse sexual por ucranianas explodiu, incluindo desde britânicos se oferecendo de maneira urgente para abrigar refugiadas ucranianas até tendências preocupantes na internet. Pesquisas que combinam termos como ‘acompanhante’, ‘pornografia’ e ‘estupro’ com a palavra ‘ucraniana’, bem como ‘pornografia refugiada ucraniana’, subiram de um jeito alarmante, segundo a Organization for Security and Co-operation in Europe (OCSE).”
A matéria ouviu também Marcia Zug, autora de um livro sobre comércio de noivas, e perguntou-lhe por que os homens compram esposas se o normal é ter de graça. A resposta é que “costumam ser homens que não têm grande valor matrimonial em seu próprio país, seja por não serem convencionalmente atraentes, ou por terem dificuldades para falar com mulher etc. Ao buscarem noivas sob encomenda, seu ‘valor de mercado’ matrimonial sobe, porque têm alguma coisa para oferecer que eles não teriam com as mulheres do seu país, como o poder do seu passaporte ou da sua moeda.” Por um lado, as ucranianas “são fáceis porque são pobres”, como notou um ex-deputado estadual de São Paulo. Por outro, os esquisitões de países mais ricos e estáveis têm acesso a mulheres valendo-se do status do seu país.
Não à toa, a matéria ouve também uma russa cuja mãe fugiu da União Soviética para o México vendendo-se como esposa, mas teve uma vida muito difícil por cair na mão de um esquisitão antissocial.
Dos detalhes contratuais, não sei. Na certa varia de empresa para empresa, bem como de país para país. Os Estados Unidos inspecionam casamento antes de dar green card e isso deve dificultar o cárcere privado de esposas compradas; por outro lado, a liberdade contratual existente naquele país permite abusos trabalhistas impensáveis no Brasil (como vimos aqui), fora que a lei varia de estado para estado. Se houver uma dada empresa que se vale de uma brecha legal de um estado dos EUA para barbarizar noivas de encomenda, só iremos descobrir quando estourar. Mas, quanto à jurisprudência inglesa, já vimos aqui que a mera possibilidade de consentir com estrangulamento está sendo usada para atenuar o assassinato de mulheres por desconhecidos.
Um elemento importante nessa equação é a do homem esquisitão sem habilidade com mulheres. Ao mesmo tempo em que o Ocidente vai introduzindo o contratualismo liberal nos âmbitos mais íntimos da vida humana, os esquisitões viciados em pornografia vão se tornando mais comum. Afinal, o mero fato de ser um esquisitão já é bem visto hoje. O melhor exemplo disso é a expansão do conceito de autismo que andou de mãos dadas com a gourmetização da doença. A personagem ficcional do Dr. Sheldon Cooper, à época com “Asperger” (que depois virou “TEA” ou “autismo leve”), virou uma espécie de garoto propaganda identitário dos esquisitões, fazendo crer que ser infantil e gostar de ficar no computador é meio caminho andado para ser um gênio da física. Se antes era feio um homem não ter jeito com mulher, hoje é socialmente aceito e até glorificado na dita “cultura nerd”.
O nosso caldo cultural está muito ruim, e o “marxismo cultural” não é o maior dos nossos problemas. Nosso maior problema é o anarcocapitalismo, que traz profundas confusões quanto à composição da sociedade. Por isso, digamos que não, atos livres não se definem por contrato, e que um Estado legítimo e soberano deve ter o poder para decretar a nulidade de contratos infames e degradantes.
Por Bruna Frascolla é doutora em filosofia pela UFBa e autora de “As ideias e o terror” (República AF, 2020).