Opinião – O grande incêndio do Brasil

No país da inversão, os criminosos são premiados e os inocentes são punidos. Ao crime sem castigo, segue-se o castigo sem crime. Escreve Paulo Briguet.

12/09/2024 09:10

“É verdade que antigamente os bombeiros apagavam incêndios, em vez de começá-los?” (Clarisse, personagem do livro “Fahrenheit 451”)

Foto: Aline Menezes com Leonardo AI

Nos últimos dias não tenho conseguido ver o céu da minha cidade; há uma camada de fumaça pairando entre a terra vermelha dos homens e o azul cintilante dos pássaros, aviões e anjos. Até o sol parece estar fazendo um esforço adicional para brilhar e ser visto. As testas porejam, a respiração está mais difícil, a rouquidão invade as gargantas, as crianças e os velhos adoecem.

Antes de começar a escrever, tomo um copo d’água. De onde vem esta fumaça, meu Deus? Qualquer criança sabe a resposta: vem do fogo. Mas de onde vem o fogo?

Ah, o fogo vem de muitos lugares. Em “Fahrenheit 451”, o fogo vem dos lança-chamas do Corpo de Bombeiros. Na clássica distopia de Ray Bradbury, publicada há 71 anos, os bombeiros não apagam incêndios, mas os provocam. Numa sociedade em que os livros são proibidos pelo Estado — e na qual a mera posse de um volume impresso pode ser punida com a morte —, a função dos bombeiros é queimá-los.

O simbolismo da obra é claríssimo. Bombeiros incendiários representam a inversão radical da realidade, tão característica das sociedades modernas. Os livros, por sua vez, simbolizam a liberdade humana, tanto que a origem das palavras livro, em português, e library, em inglês, é a mesma: o latim líber, nome da membrana da árvore de cuja seiva os romanos fabricavam papel. Fahrenheit 451, que dá o título ao livro, é a temperatura em que o papel pega fogo (correspondente a 233 graus Celsius).

Quando a temperatura da sociedade atinge determinado limite, os incendiários modernos — que são os três grandes eixos do poder global — enxergam a oportunidade para promover a radical inversão de toda a realidade. As coisas perdem a ordem interna que lhes justifica a existência: o bombeiro provoca incêndios, o juiz desrespeita a lei, o médico defende a doença, o jornalista odeia a verdade, o artista exalta a feiura, o professor celebra a ignorância.

Nós, brasileiros, estamos vivendo nesse mundo de “Fahrenheit 451”. E não se trata do fogo que consome milhões de hectares de nossas reservas naturais, acompanhado pelo silêncio retumbante das classes falantes, subitamente emudecidas.

A fumaça que encobre o céu, e entra por nossos pulmões, certamente é menos venenosa que a outra fumaça — aquela que invade almas e entorpece consciências. Não deixa de ser engraçado o fato de que os negadores do primeiro incêndio sejam também os negadores do segundo.

Nos últimos tempos, a realidade brasileira está completamente moldada pela inversão revolucionária.

O tribunal supremo que deveria zelar pelas leis é o primeiro a incendiá-las. Um sujeito foi tirado da prisão para ser colocado no trono maior do país. O setor mais importante da economia nacional, que levou o país nas costas por décadas, é criminalizado pelo próprio governo.

Um invasor de propriedades quer ser prefeito da maior cidade do país. O Hino Nacional é cantado em linguagem “neutra”. Militares batem continência para integrantes de um movimento terrorista.

O candidato derrotado nas eleições é exaltado nas ruas, enquanto o vencedor só pode se movimentar em ambientes controlados. Pais e mães de família que jamais cometeram um crime são condenados a longuíssimos anos de prisão em regime fechado, enquanto assassinos, estupradores e traficantes saem pela porta de frente da cadeia.

A moça que matou os pais quer ser funcionária da Justiça. O ministro dos Direitos Humanos se nega a defender a vida dos seres humanos no ventre materno, mas é destituído do cargo por supostamente assediar uma colega do governo. Sua substituta é ré em uma ação sobre desvios milionários em uniformes escolares.

O faraó calvo suspende uma rede social com 20 milhões de usuários porque não admite que falem mal dele. O Estado gastador e deficitário decide que os cidadãos comuns não têm direito ao sigilo do seu próprio dinheiro.

Alguns dos efeitos mais perversos da inversão radical ocorrem no campo da linguagem. Estado democrático de direito — essa expressão largamente utilizada, até pela direita — representa o exato oposto das palavras que a compõem: estado significa revolução permanente; democrático significa tirânico; do direito significa procedente de uma vontade pessoal.

No mundo invertido, as palavras sempre são utilizadas para esconder a realidade, ainda que sempre deixem vestígios claros do seu significado real. Nunca é demais lembrar que os nomes completos dos partidos que instauraram os regimes totalitários da Alemanha e da União Soviética no século XX eram, respectivamente, Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães e Partido Social-Democrata Operário Russo.

Diante do bárbaro espetáculo, que fazer? O mais importante, em um mundo invertido, é preservar a ordem da própria alma. E isso começa individualmente, na medida em que cada um de nós se nega a ser contagiado pela epidemia de mutismo.

Ao quebrar a espiral de silêncio e apontar as injustiças escandalosas, que saltam aos olhos, você cria em si uma espécie de templo da sanidade — como fizeram os Homens-Livro de “Fahrenheit 451”.

Assim, com paciência e coragem, iremos fortalecendo a esperança de que um dia os bombeiros voltem a apagar incêndios e salvar pessoas. Ainda que talvez esses bombeiros pertençam às gerações futuras.

Agora vocês, meus sete leitores, me deem licença, que eu vou tomar mais um copo d’água.

 

 

 

Por Paulo Briguet, é escritor, jornalista, palestrante e professor de literatura. Nascido em São Paulo no ano de 1970, trabalhou em diversos jornais, revistas e assessorias de comunicação no Paraná. Foi colunista da Folha de Londrina (2016-2020) e editor-chefe do jornal Brasil Sem Medo (2020-2024). Publicou vários livros, entre eles “Nossa Senhora dos Ateus”, “Coração de Mãe”, “O Mínimo sobre Distopias” e “Diário de Moby Dick” (este em parceria com seu pai, Paulo Lourenço). Ao longo de sua carreira, escreveu mais de 2 mil crônicas.

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