A posição da Índia mostra que, neste mundo cada vez mais polarizado, uma sólida consciência dos seus interesses e de suas barganhas pode existir. Escreve Henrique Cavalcanti de Albuquerque.
06/11/2024 08:46
“O BRICS também se expandiu nos últimos anos”
A reunião dos países do BRICS, realizada na semana passada na bela cidade russa de Kazan, às margens do rio Volga, teve uma ausência conveniente: Lula. O presidente brasileiro, em decorrência de uma queda que originou um ferimento na cabeça, não esteve presente. Foi “salvo pela queda”. Mas por que a presença de Lula em um evento do BRICS seria altamente problemática para o Brasil? Afinal, o Brasil é membro dos BRICS desde sua fundação — se é que houve de fato uma fundação do bloco.
Jim O’Neill, do banco Goldman Sachs, construiu essa sigla em um quase jurássico ano de 2001. Usa-se este exagero de linguagem para reforçar como o mundo mudou tanto em pouco mais de vinte anos. Naquele momento, a China era uma aliada do chamado Ocidente, os países mais ricos do mundo, liderados pelos EUA, e recebia bilhões de dólares de investimento por ano. Sua economia exuberante estava plenamente em processo de integração no mundo moderno industrial e tecnológico. A Rússia, recém-saída do comunismo, também se reorganizava depois de anos de caos e tinha eleito, em 2000, um certo Vladimir Putin, frequentador assíduo dos encontros do G7, os países mais ricos do mundo, vendendo petróleo barato e sendo, por isso, bajulado ao extremo.
Por outro lado, nesse momento, o Brasil vivia o início do super ciclo das commodities, ainda governado em 2001 por Fernando Henrique Cardoso, que entregaria o poder poucos anos depois, em 2003, para o próprio Lula, que no próximo ano presidirá o BRICS. A Índia, neste momento, era uma promessa, apenas iniciando seu processo de abertura econômica. Foram anos gloriosos de globalização, integração de mercados e investimentos. O mundo apontava na direção de uma paz mais ou menos duradoura e estável, já que países integrados dividem interesses e, portanto, guerras são contraproducentes.
Em recente artigo na The Economist intitulado “How the world’s poor stopped catching up”, a revista, tradicionalmente filiada ao liberalismo político e econômico, tece reflexões sobre esses últimos vinte anos. Com base em dados, conclui que os anos de globalização do início do século trouxeram enorme desenvolvimento econômico e diminuição da pobreza em ritmo acelerado, mas houve uma parada brusca exatamente na época recente.
O ciclo de valorização das commodities acabou, gerando frustração nos países que dele dependeram — o que vale, em grande parte, para o Brasil. Por outro lado, protecionismos generalizados fizeram a curva de crescimento do comércio internacional diminuir. Mas é a política o maior fator desta desglobalização. Tensões geopolíticas crescentes, incluindo a guerra da Ucrânia, que, não nos esqueçamos, já tinha começado em 2014 com a primeira invasão da Crimeia pela Rússia, tornaram a integração dos mercados cada vez mais tensa.
A China, de polo atrativo para investimentos americanos e europeus, agora se tornou um competidor industrial implacável. Em relação às guerras entre Israel e grupos terroristas apoiados pelo Irã, este processo tem um histórico mais longo e paralelo, o que apenas torna o ambiente global ainda mais instável. O BRICS atual, que será presidido por Lula, de um conjunto de países atrativos para o chamado Ocidente, tornou-se quase um bloco, mais institucionalizado, mais articulado, com direito a banco próprio e sede permanente, porém liderado pela China, em oposição pouco disfarçada aos EUA.
O BRICS também se expandiu nos últimos anos. A primeira expansão foi a incorporação da África do Sul, acrescentando o “S” à sigla atualmente em uso. Na última reunião, mais adesões: o bloco agora inclui Egito, Etiópia, Irã, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, e esta expansão é fortemente apoiada pela China. Se o leitor prestar atenção, Irã e Arábia Saudita são ferozes oponentes. O mesmo se pode afirmar de Egito e Etiópia. A ideia da China ao trazer países em conflito para dentro do bloco é reafirmar sua posição de nova liderança diplomática. Algo como uma lição de moral aos americanos: “Se vocês não conseguem, nós conseguimos.” O tempo dirá se, de fato, esta nova liderança consegue pacificar conflitos tão solidificados.
Na reunião na Rússia, o bloco apontou para uma visão antiamericana e antieuropeia. Um discurso de “nova ordem mundial” foi claramente dado. E qual seria a posição do Brasil neste contexto? Somos uma democracia e queremos continuar a sê-lo. Além disso, nossos valores culturais e sociais estão ancorados no Ocidente. Porém, nossa economia é cada vez mais dependente da Ásia. Ficamos no meio do caminho nessa disputa mundial cada vez mais intensa? Não necessariamente.
Tomemos o caso do mais importante ator internacional hoje: a Índia. É a maior democracia do mundo e tem instituições políticas ocidentais, herança da colonização britânica. Porém, sua milenar cultura a torna única, portadora de uma identidade própria. Seus interesses são múltiplos e contraditórios: ligada à Rússia por laços militares, é hoje um dos maiores ativos do chamado “friendshoring” — a transferência de empresas ocidentais, principalmente americanas, para países amigáveis. A Índia está nos BRICS liderados pela China, ao mesmo tempo em que tem disputas fronteiriças com ela, incluindo guerras no passado recente. Seu primeiro-ministro, Narendra Modi, encontra-se com Putin, Biden e todos os líderes europeus. É cortejado para parcerias com todos eles e, por isso mesmo, aposta em todos os lados.
A posição da Índia mostra que, neste mundo cada vez mais polarizado, uma sólida consciência dos seus interesses e de suas barganhas pode existir. O Brasil poderia adotar a mesma posição. O BRICS não necessariamente será um bloco antiocidente, embora a Rússia e a China assim o queiram. O Egito e a Arábia Saudita são regimes autoritários, mas apoiados pelos EUA. Há espaço para uma posição inteligente dentro dos BRICS. A posição do Brasil de Lula poderia ser essa, em boa parte usando o BRICS como plataforma de seus interesses, sem apostar em um alinhamento direto com nenhum dos lados. Isso não significa comprar a narrativa antiocidental de russos e chineses. Mas essa posição precisa ser conquistada e trabalhada cuidadosamente.
Lula, em sua diplomacia pessoal, esqueceu o Brasil. Suas falas sobre a guerra da Ucrânia foram constrangedoras, para dizer o mínimo. O uso inconsequente do Holocausto como suposto argumento para explicar o complexo conflito entre Israel e grupos terroristas envergonhou o país. Logo no início do mandato, as críticas ao dólar como moeda mundial soaram infantis. Até a China, que abertamente propõe uma nova moeda mundial de comércio, toma o cuidado de primeiro construir solidamente essa alternativa, em vez de apenas jogar palavras ao vento. E, finalmente, o abraço caloroso de Lula ao regime venezuelano, com direito a tapete vermelho, atenta contra princípios democráticos básicos, para depois, de forma contraditória, obrigar o Brasil a se opor à entrada da mesma Venezuela no BRICS.
Sem construir uma posição sólida e racional, de longo prazo, calculada nos interesses brasileiros, as narrativas desconcertadas do presidente acabam gerando um alívio: com a queda, o silêncio. Quando não se planeja o que se quer, manter-se quieto é apenas o resultado do excesso de fala.
Por Henrique Cavalcanti de Albuquerque, professor de História e de Relações Internacionais, mestre em História da Cultura e autor dos livros “História do Brasil Trajetórias e Sentidos” e “História da Política Externa Brasileira” (editora Freitas Bastos).